
Empregando modelo de PPP já testado no estado, iniciativa busca universalizar serviço essencial para 1,18 milhão de capixabas até 2033, espelhando-se em experiências e desafios de megaprojetos como o da Cedae no Rio.
Um marco histórico para o saneamento básico no Espírito Santo está prestes a ser concretizado. No próximo dia 17 de junho, os pregões da B3, a bolsa de valores paulista, serão palco de um leilão de concorrência internacional que definirá o futuro do esgotamento sanitário em 43 municípios capixabas. A Companhia Espírito-santense de Saneamento (Cesan) colocará em jogo dois mega contratos de Parceria Público-Privada (PPP), prevendo um investimento colossal de quase R$ 7 bilhões ao longo de até 25 anos. O objetivo? Universalizar a coleta e o tratamento de esgoto, levando saúde, dignidade e um meio ambiente mais limpo para cerca de 1,18 milhão de pessoas, num movimento que promete transformar a realidade do estado.

Com o edital publicado no Diário Oficial da União em 31 de maio e propostas sendo aceitas até 6 de junho, a iniciativa privada se prepara para assumir a gestão do sistema de esgoto nessas localidades, incluindo a operação e a expansão da infraestrutura. Este modelo, que transfere riscos e responsabilidades ao parceiro privado, não é novidade para a Cesan, que já colhe frutos de PPPs semelhantes em Serra, Cariacica e Vila Velha. A nova empreitada, modelada em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e chancelada pelo Tribunal de Contas do Estado, visa replicar e ampliar esse sucesso, garantindo mais de 90% de cobertura de esgoto para a população atendida pela companhia até 2033, sem impacto nas tarifas atuais. Contudo, a magnitude do projeto e o modelo de concessão levantam inevitáveis comparações com outras grandes iniciativas do setor no Brasil, como a complexa e debatida concessão dos serviços da Cedae, no Rio de Janeiro.
Um Novo Mapa Sanitário: O Raio-X da Concessão Capixaba
O ambicioso projeto da Cesan foi estrategicamente dividido em dois grandes blocos, visando otimizar a gestão e atrair investidores com diferentes perfis e capacidades.
- Bloco 1: A Grande Expansão Interiorana e Metropolitana Este bloco abrange a maior parte dos municípios (35 no total), englobando desde cidades do norte capixaba, como Nova Venécia e São Mateus (considerando a abrangência regional, embora não listado explicitamente, mas comum em blocos grandes), até joias turísticas serranas como Domingos Martins e Santa Teresa, além da própria capital, Vitória, e municípios populosos como Aracruz. A diversidade geográfica e populacional é imensa, incluindo áreas rurais, sedes municipais e distritos. Para este conjunto, o contrato prevê um investimento direto de R$ 1,08 bilhão e custos operacionais estimados em R$ 3,85 bilhões ao longo de 25 anos. A tarefa aqui é monumental: construir e operar sistemas de esgoto em locais com desafios variados, desde a dispersão populacional até a topografia acidentada.
- Bloco 2: Foco no Litoral Sul e Região Central Menor em número de municípios (8), mas não menos estratégico, este bloco inclui importantes polos como Guarapari, Anchieta, Castelo e Viana. Estas cidades combinam áreas urbanas densas, potencial turístico significativo (especialmente as litorâneas) e atividades econômicas relevantes. O investimento previsto é de R$ 399,6 milhões, com custos operacionais de R$ 1,39 bilhão ao longo de 23 anos. A proximidade geográfica e as características semelhantes podem permitir sinergias na operação.
Ao todo, 1,18 milhão de capixabas sentirão o impacto direto dessas concessões. A promessa é clara: levar a rede de coleta de esgoto até a porta das casas e garantir que esses dejetos recebam tratamento adequado antes de retornar à natureza. É uma mudança que vai muito além dos canos enterrados; trata-se de saúde pública, de rios e praias mais limpos, de um futuro mais sustentável.

O Motor da Mudança: Por Dentro do Modelo PPP da Cesan
A opção pela Parceria Público-Privada (PPP), na modalidade de concessão administrativa, não foi aleatória. Ela representa uma estratégia do governo estadual para acelerar investimentos e modernizar a gestão, transferindo para a iniciativa privada a responsabilidade pela execução e operação dos serviços, bem como os riscos inerentes ao negócio.
- Gestão e Risco Privados: A concessionária vencedora atuará em nome próprio, financiando, construindo, operando e mantendo a infraestrutura de esgotamento sanitário. A Cesan, por sua vez, atuará como poder concedente e fiscalizador, garantindo o cumprimento das metas contratuais.
- Modelagem Técnica: A parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), uma instituição de renome, trouxe expertise técnica e econômica para a estruturação do projeto, buscando as melhores práticas de mercado e a sustentabilidade financeira dos contratos.
- Transparência e Controle: O processo incluiu consulta pública, permitindo a participação da sociedade, e passou pelo crivo do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCEES), que analisou a legalidade e a viabilidade da modelagem, conferindo maior segurança jurídica ao processo.
- Histórico Positivo: O governador Renato Casagrande aposta na expansão de um modelo que considera “de sucesso”, citando as PPPs já em andamento na Grande Vitória (Serra, Cariacica e Vila Velha), que, segundo o governo, têm apresentado resultados positivos na ampliação da cobertura de esgoto.
- Tarifa Preservada: Um ponto crucial, destacado pela Cesan, é a garantia de que não haverá impacto na atual estrutura tarifária de água e esgoto para o consumidor final em decorrência direta desses novos contratos de PPP. A remuneração da concessionária virá de pagamentos feitos pela própria Cesan, atrelados ao desempenho e cumprimento de metas.
Este modelo busca combinar a agilidade e capacidade de investimento do setor privado com a visão estratégica e o controle do setor público, um arranjo cada vez mais comum para destravar grandes projetos de infraestrutura no Brasil.

“Saúde, Dignidade e Compromisso com o Futuro”: A Visão por Trás dos Bilhões
As palavras do governador Renato Casagrande e do presidente da Cesan, Munir Abud, ecoam a importância social e ambiental do projeto. “Universalizar o saneamento é garantir saúde, dignidade e qualidade de vida para todos os capixabas. Saneamento é compromisso com o futuro”, enfatizou Casagrande. Munir Abud complementa, falando em “momento histórico” e na garantia contratual para que “mais de 90% da população atendida pela Cesan terá acesso aos serviços de coleta e tratamento de esgoto até 2033”.
Essa visão se traduz em benefícios tangíveis:
- Saúde Pública: A falta de tratamento de esgoto é uma das principais causas de doenças de veiculação hídrica (como diarreia, hepatite A, cólera, esquistossomose), que sobrecarregam o sistema de saúde e afetam desproporcionalmente crianças e populações vulneráveis. Universalizar o saneamento significa reduzir drasticamente a incidência dessas doenças, diminuir gastos com saúde e melhorar a qualidade de vida geral. Imagine crianças brincando sem o risco constante de contaminação, imagine menos dias de trabalho perdidos por doenças evitáveis.
- Preservação Ambiental: Milhões de litros de esgoto deixarão de ser despejados in natura nos rios, córregos, lagoas e no mar capixaba. Isso significa a recuperação gradual de ecossistemas aquáticos, a proteção da biodiversidade, praias mais limpas para o lazer e o turismo, e a conservação dos recursos hídricos essenciais para o abastecimento e a economia. O cheiro fétido que paira sobre alguns cursos d’água dará lugar a um ambiente mais saudável.
- Dignidade Humana: Ter acesso à rede de esgoto é um direito básico, fundamental para a dignidade. Viver sem o convívio com esgoto a céu aberto, fossas sépticas precárias ou o medo constante de contaminação transforma a autoestima e o bem-estar das comunidades.
Concreto e Aço a Serviço da Vida: A Infraestrutura Planejada
Para alcançar a meta de universalização, o projeto prevê um vasto cronograma de obras, que redesenhará a infraestrutura sanitária dos 43 municípios:
- 39 Novas Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs): São as “fábricas” que receberão o esgoto bruto e, através de processos físico-químicos e biológicos, removerão os poluentes, devolvendo água tratada (efluente) ao meio ambiente em condições seguras. Cada ETE será dimensionada para atender à demanda da sua área de abrangência.
- 219 Estações Elevatórias de Esgoto (EEEs): Como nem sempre a gravidade ajuda, as EEEs funcionam como “bombas” que impulsionam o esgoto coletado nas partes mais baixas da cidade para níveis mais altos, permitindo que ele continue seu fluxo até a ETE. São peças cruciais para vencer os desafios do relevo.
- 1.200 Quilômetros de Redes Coletoras: Esta é a espinha dorsal do sistema. São as tubulações que serão implantadas sob as ruas, conectando as residências e estabelecimentos comerciais ao sistema de coleta e transporte do esgoto. É um trabalho extenso, que envolverá obras em praticamente todas as áreas urbanas dos municípios contemplados.
A imagem futura é de canteiros de obras espalhados pelo estado, seguidos pela conexão dos imóveis à nova rede, culminando na operação contínua dessas estruturas que, embora muitas vezes invisíveis sob o solo, são vitais para a saúde e o desenvolvimento.
O Gigante Fluminense como Espelho: Lições da Concessão da Cedae no Rio de Janeiro
Ao analisar a iniciativa capixaba, é inevitável traçar paralelos com a megaconcessão dos serviços de água e esgoto da Cedae, realizada no Rio de Janeiro em 2021. Considerado o maior projeto de infraestrutura ambiental do Brasil, a concessão fluminense leiloou quatro blocos regionais, arrecadando R$ 22 bilhões em outorgas e prevendo R$ 30 bilhões em investimentos para universalizar o saneamento em grande parte do estado.
Semelhanças:
- Modelo de Concessão: Ambos os projetos utilizam a concessão à iniciativa privada como ferramenta para atrair investimentos massivos e expertise operacional, buscando cumprir as metas do Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/2020), que exige a universalização dos serviços até 2033.
- Escala Ambiciosa: Tanto no ES quanto no RJ, os projetos envolvem cifras bilionárias, um grande número de municípios e milhões de pessoas beneficiadas, representando transformações estruturais no setor.
- Foco na Universalização: O objetivo central é o mesmo: levar água tratada e, principalmente, coleta e tratamento de esgoto a quase 100% da população urbana.
Diferenças e Pontos de Atenção (Lições do RJ para o ES):
- Escala e Complexidade: O projeto do Rio é significativamente maior em termos de população atendida, valor de outorga e investimentos totais. A complexidade da Região Metropolitana do Rio, com suas favelas e ocupações irregulares, apresenta desafios únicos para a expansão da rede. O ES, embora com seus próprios desafios, lida com uma escala diferente.
- Modelo de Leilão e Outorga: O leilão da Cedae envolveu altas taxas de outorga (pagamento pelo direito de explorar o serviço), que foram usadas pelo governo estadual para diversos fins. A PPP da Cesan, sendo uma concessão administrativa, foca mais na contraprestação pública pelos serviços prestados pela concessionária, atrelada a metas, e não gerou outorgas bilionárias diretas.
- Questões Tarifárias: Uma das maiores polêmicas no Rio pós-concessão foram os relatos de aumentos expressivos nas contas de água e esgoto para alguns consumidores e a dificuldade na aplicação de tarifas sociais. A Cesan afirma que o modelo capixaba não impactará a tarifa atual, um ponto que certamente será acompanhado de perto pela população e órgãos de controle. A sustentabilidade dessa promessa a longo prazo é um fator chave.
- Desafios Operacionais e Metas: A experiência fluminense mostra que, mesmo com contratos assinados, a execução das obras e o cumprimento das metas de expansão podem enfrentar obstáculos (licenciamento ambiental, questões fundiárias, integração com sistemas existentes, adimplência dos usuários). A fiscalização rigorosa e a capacidade de gestão de contratos complexos são fundamentais.
- Impacto Ambiental Específico: No Rio, a despoluição da Baía de Guanabara é um objetivo emblemático e complexo. No ES, a recuperação de rios como o Doce (já impactado por outros fatores) e a proteção das praias e restingas são prioridades ambientais cruciais que dependem do sucesso do projeto.
A experiência da Cedae serve, portanto, como um caso de estudo valioso para a Cesan e para o Espírito Santo. Mostra o imenso potencial transformador dessas concessões, mas também alerta para a necessidade de planejamento robusto, contratos bem amarrados, fiscalização eficaz e um diálogo transparente com a sociedade para gerenciar expectativas e desafios, especialmente em relação a tarifas e qualidade do serviço.

Além dos Canos: O Legado Socioeconômico da Universalização
O impacto do investimento de R$ 7 bilhões e da universalização do esgoto transcende a saúde e o meio ambiente, gerando ondas positivas na economia e na estrutura social do Espírito Santo:
- Geração de Emprego e Renda: A construção das ETEs, EEEs e a implantação de 1.200 km de redes demandarão um contingente significativo de mão de obra direta e indireta (construção civil, engenharia, fabricação de materiais, logística, serviços). Após a conclusão, a operação e manutenção dos sistemas também criarão postos de trabalho qualificados.
- Valorização Imobiliária: Áreas que passam a contar com saneamento básico completo tendem a ter seus imóveis valorizados, atraindo novos moradores e investimentos.
- Impulso ao Turismo: Praias e rios despoluídos são um cartão de visitas poderoso. Municípios com vocação turística, como Guarapari, Anchieta, Conceição da Barra, Domingos Martins e Santa Teresa, podem se beneficiar enormemente com a melhoria da qualidade ambiental, atraindo mais visitantes e gerando receita.
- Melhora nos Indicadores Sociais: A redução de doenças e a melhoria da qualidade de vida impactam positivamente indicadores como mortalidade infantil, expectativa de vida e desempenho escolar (crianças mais saudáveis faltam menos às aulas).
- Atração de Novos Negócios: Uma infraestrutura robusta, incluindo saneamento, é um fator considerado por empresas ao decidirem onde se instalar ou expandir suas operações.
Expectativas e Interrogações: A Voz da Sociedade
Enquanto a Cesan e o governo estadual celebram o avanço, a sociedade capixaba observa com uma mistura de esperança e cautela. A promessa de viver sem esgoto a céu aberto e com rios mais limpos é amplamente desejada. A perspectiva de desenvolvimento econômico e melhoria da saúde anima diversos setores.
No entanto, como em todo grande projeto de concessão, surgem questionamentos: A iniciativa privada conseguirá entregar a qualidade prometida e cumprir os prazos ambiciosos? A fiscalização da Cesan será realmente efetiva? A garantia de manutenção das tarifas se sustentará ao longo de 25 anos, mesmo com a inflação e eventuais necessidades de reequilíbrio contratual? Como será o atendimento ao cliente sob gestão privada? Como garantir que as áreas mais remotas e de menor retorno financeiro dentro dos blocos recebam a mesma atenção?
O diálogo contínuo entre o poder público, as futuras concessionárias e a população, através de audiências, canais de comunicação transparentes e conselhos de acompanhamento, será fundamental para construir confiança e garantir que o projeto atenda, de fato, ao interesse coletivo.
Um Marco Decisivo e o Olhar no Futuro
O leilão agendado para 17 de junho na B3 não representa apenas a transferência de um serviço ou um fluxo bilionário de investimentos. Ele simboliza a aposta do Espírito Santo em um futuro onde o saneamento básico universalizado seja a regra, não a exceção. É um passo decisivo para alinhar o estado às metas nacionais e às melhores práticas de saúde pública e gestão ambiental.
Observando as experiências de outros estados, como o Rio de Janeiro com a Cedae, o Espírito Santo tem a oportunidade de aprender, adaptar e buscar um modelo de concessão que maximize os benefícios e minimize os riscos. A promessa de modernização, eficiência e, crucialmente, de não onerar o bolso do cidadão com aumentos tarifários diretos, coloca uma grande responsabilidade sobre os gestores públicos e as empresas que vencerem a disputa.
O sucesso desta empreitada não será medido apenas pelos quilômetros de redes instaladas ou pelas ETEs construídas, mas pela transformação real na vida de mais de um milhão de capixabas e pela saúde renovada dos seus rios e praias. O desafio está lançado, e os próximos anos dirão se a promessa contida no edital se converterá em um legado duradouro de progresso e bem-estar para o Espírito Santo. A execução cuidadosa e a vigilância constante serão a chave para que este “momento histórico” cumpra seu potencial transformador.
com informações da Secom/ES