Gaza: dois anos de devastação sem fim

Dois anos se passaram desde 7 de outubro de 2023, quando o ataque do Hamas desencadeou uma cadeia de destruição que transformou Gaza num cenário de devastação contínua. O que começou naquela data marcante evoluiu para uma crise humanitária que a ONU classifica como catastrófica — uma palavra que, de tão repetida em relatórios e discursos, perdeu parte de seu peso, mas não de sua verdade brutal.

Gaza não existe mais como era. Os números oficiais do Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) e agências das Nações Unidas revelam a magnitude da tragédia: mais de 53.000 palestinos mortos e mais de 120.000 feridos até maio de 2025. Outras fontes apontam números ainda mais elevados, com mais de 67.000 mortos. Entre as vítimas estão crianças, mulheres, idosos — vidas tangenciadas pela violência, pela fome e pelo colapso dos sistemas básicos de saúde.

Cerca de 1,9 milhão de pessoas — quase 90% da população da Faixa de Gaza — foram forçadas a abandonar suas casas. Muitos já fugiram dez vezes ou mais, buscando refúgio numa paisagem que treme a cada bombardeio. A infraestrutura foi pulverizada: 92% das habitações severamente danificadas ou destruídas, hospitais operando a meio vapor quando ainda funcionam, escolas transformadas em escombros.

Os que não voltam

Dentro desses números, milhares permanecem desaparecidos. O Ministério da Saúde de Gaza fala em 6.000 pessoas soterradas e 3.600 desaparecidos. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha registra 7.000 casos ainda sem resposta. São pessoas detidas sem comunicação, soterradas sob escombros, ou simplesmente sem notícias — famílias inteiras respirando entre o luto e a incerteza. Mais de 60 famílias perderam dezenas de pessoas de uma só vez.

No meio da poeira e dos escombros, há gente que procura. Busca filho, irmão, amigo. Abre sepulturas, vasculha destroços. Guarda as roupas que cheiravam a quem se foi. Reza. Escreve nomes em listas de desaparecidos. A palavra “esperança” — pequena, talvez sufocada — ainda pulsa nos dedos que tatuam cartazes, nos olhares que não se resignam.

A vida entre ruínas

As casas onde se abrigavam sonhos, histórias e momentos familiares: 92% foram severamente danificadas ou destruídas. Cada casa destruída representa uma memória arrancada, cada sala vazia um riso que não retorna. Não há mais casas para voltar, sonhos para reconstruir — apenas sobrevivência precária entre os destroços.

O bloqueio prolongado interrompe o fluxo de alimentos, água limpa e combustível. A ONU alerta que, em muitos momentos, a ajuda essencial foi negada ou impedida, com movimentos de socorro bloqueados ou adiados. A fome tornou-se companheira constante: faltam não só comida, mas segurança alimentar, água limpa e saneamento básico. Muitos hospitais operam a meio vapor ou estão fechados. Aqueles que ainda funcionam enfrentam sobrecarga extrema, recursos escassos e médicos exauridos.

Na madrugada do segundo aniversário, Gaza viveu mais um dia de bombardeios — de terra, mar e ar. Em Khan Younis e na Cidade de Gaza, famílias se amontoam em abrigos improvisados. Mohammed Dib, de 49 anos, resume: “Faz dois anos que estamos vivendo com medo, horror, deslocamento e destruição”. O medo virou rotina, o horror cotidiano. O céu amanhece com nuvens de fumaça e cinzas. O ruído dos bombardeios transforma cada respiração em peso, cada segundo em anúncio de perigo invisível.

O custo de socorrer

Mais de 500 trabalhadores humanitários já morreram tentando aliviar o sofrimento, muitos deles pertencentes à ONU, vítimas de ataques enquanto socorriam outros. A UNRWA, responsável pelos refugiados palestinos, vê suas instalações bombardeadas, sua ajuda bloqueada, suas rotas de socorro impedidas. As instalações de ajuda humanitária frequentemente sofrem ataques ou restrições. Cada vida perdida entre aqueles que vieram ajudar é também uma acusação silenciosa contra a lógica da guerra.

Israel: o preço do isolamento

Enquanto Gaza sangra, Israel enfrenta crescente isolamento na comunidade internacional. As operações militares que devastaram Gaza geraram ondas de condenação global. Comissões da ONU investigam possíveis crimes de guerra e genocídio, vozes diplomáticas multiplicam-se pedindo contenção.

O custo político da operação é pesado: críticas de aliados históricos, manifestações em dezenas de países, processos em tribunais internacionais. A narrativa de autodefesa encontra resistência crescente diante das imagens de destruição total, do número de civis mortos, dos trabalhadores humanitários atingidos, dos hospitais bombardeados.

Internamente, Israel também carrega suas feridas: as memórias do ataque de 7 de outubro, os reféns, as famílias destruídas. Israelenses se reúnem para recordar os lugares onde foram feridos, mortos ou feitos reféns — o festival Nova, a Praça dos Reféns. Yuval e seu noivo, encontrados juntos na morte, foram enterrados lado a lado. Cada memória pesa, sobrevive e sangra.

Mas externamente, a resposta desproporcional custou ao país capital diplomático crucial, transformando-o em alvo de sanções, boicotes e repúdio internacional crescente.

Israel torna-se um pária internacional para que Benjamin Netanyahu mantenha-se no poder, ou será que esquecemos que ele estava para ser afastado quando houve o ataque do Hamas?

ONU: testemunha impotente

A crise de Gaza expõe a fragilidade extrema da ONU. Apesar de classificar a situação como catastrófica, de emitir relatórios detalhados, de pedir cessar-fogo repetidamente, a organização não consegue fazer suas decisões serem respeitadas. O Conselho de Segurança permanece paralisado por vetos, incapaz de impor soluções.

Dois anos de resoluções ignoradas, de apelos humanitários desrespeitados, de convenções internacionais violadas sem consequências práticas expõem uma verdade brutal: a arquitetura global criada para prevenir tragédias como esta não funciona quando os poderosos decidem ignorá-la. A ONU tornou-se testemunha impotente de uma devastação que documenta mas não consegue interromper.

O impasse que devora

Gaza destruída. Israel isolado. ONU enfraquecida. Dois anos depois, o ciclo permanece: bombardeios, negociações frustradas, promessas vazias, destruição contínua. As sirenes não param, a ajuda humanitária não chega suficientemente, os desaparecidos não são encontrados. Há comissões, avaliações, reações diplomáticas, vozes pedindo contenção. Mas o som dos bombardeios nem sempre ouve quem fala.

A cada aniversário, a pergunta ecoa: quantas lágrimas devem rolar antes que a guerra acabe? Quantas vidas, quantas ruínas, quanto isolamento diplomático, quanta irrelevância institucional serão necessários antes que algo mude? Quantos números precisam se tornar rostos com nomes, histórias, vozes?

Porque contar é também testemunhar. Cada cifra lista uma dor que insiste em respirar. E se contar dói, denunciar não é suficiente — exigir é imperativo. Gaza ensina que isto não é guerra abstrata: é devastação que se prolonga, alimentando-se das ausências, da fome, da sede, da dor de enterrar filhos.

O que Gaza ensina, depois de dois anos, é que palavras sem força, condenações sem consequências e instituições sem poder não salvam vidas — apenas contam os mortos. Hoje, no aniversário de dois anos, Gaza chora de novo. E também espera — mantém viva uma última esperança de que, talvez, amanhã, as sirenes sejam só lembranças, o silêncio uma paz possível.