O 20 de novembro marca no Brasil o Dia Nacional da Consciência Negra, uma data de grande simbolismo e dor, mas também de resistência. É uma oportunidade para refletir sobre a herança da escravidão, sobre o racismo estrutural que segue matando e marginalizando a população negra, e para homenagear aqueles que resistiram e continuam resistindo. Neste texto, quero focar especialmente em uma ferida aberta: o extermínio da juventude negra nas periferias, e nas múltiplas formas de opressão que atingem especialmente os jovens negros pobres.
1. Extermínio da juventude negra nas periferias
Nas grandes cidades brasileiras, sobretudo nas periferias, os jovens negros enfrentam uma violência sistêmica brutal. Operações policiais se tornaram tragédias frequentes. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Operação Contenção, realizada em 28 de outubro de 2025, mobilizou cerca de 2.500 agentes de segurança em favelas do Complexo do Alemão e da Penha. Segundo a Defensoria Pública, 121 pessoas morreram, a maioria civis — muitos relatos apontam para vítimas jovens, negros e pobres.
Essa não é uma exceção recente. Em 2021, na favela do Jacarezinho, uma operação policial deixou ao menos 27 ou 28 mortos, segundo diferentes balanços. Já a Chacina da Vila Cruzeiro, em maio de 2022, resultou em 23 pessoas mortas durante uma ação conjunta do BOPE, Polícia Federal e Rodoviária.
Esses números não são apenas estatísticas: representam vidas jovens — na sua maioria negras — que cresceram em bairros pobres, sem redes de proteção reais, presos em um ciclo de criminalização. A violência policial, nesse contexto, funciona muitas vezes como instrumento de extermínio social.
Segundo a Anistia International, em 2021, 6.145 pessoas foram mortas por policiais no Brasil, e 84,1% dessas vítimas se identificaram como negras. Esses dados mostram que a violência letal não atinge igualmente: ela atinge atravessada pela cor da pele.
2. Falta de oportunidades: educação e trabalho
Além da violência física, há uma violência estrutural econômica. Jovens negros periféricos frequentemente têm acesso muito limitado a uma educação pública de qualidade, bem como a empregos bem remunerados.
A desigualdade racial no Brasil é histórica e profunda. As políticas públicas avançaram (como ações afirmativas), mas ainda não são suficientes para equacionar as desvantagens de séculos de exclusão. A falta de perspectiva econômica e social reforça a vulnerabilidade da juventude negra frente à criminalização ou à violência policial.
Muitos jovens negros sonham em sair do ciclo da pobreza, mas trombam com escolas mal equipadas, professores despreparados, falta de infraestrutura — e depois, mesmo que consigam formação, encontram poucas oportunidades de trabalho decente e estável, agravando a sensação de abandono e marginalidade.
3. A situação da mulher negra periférica
Para a mulher negra que vive na favela, a opressão é ainda mais complexa: ela sofre racismo, pobreza, machismo e falta de acesso a oportunidades. São muitos os obstáculos para ascender socialmente ou ser reconhecida nas esferas acadêmicas, artísticas e culturais.
Neste ano, no entanto, ocorreu um marco simbólico histórico: Ana Maria Gonçalves, escritora mineira, tornou-se a primeira mulher negra a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL) em seus 128 anos de existência.
A ABL, fundada em 1897 por Machado de Assis, que era negro, permaneceu por muito tempo dominada por vozes brancas e masculinas. A eleição de Ana Maria Gonçalves representa não só uma vitória simbólica, mas também um chamado para a presença efetiva da diversidade negra no centro do pensamento e da cultura brasileira.
4. Lembrar a escravidão: dívida histórica e falta de reparação
O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão (em 1888), e, ao fazê-lo, não compensou verdadeiramente as populações libertas. Em vez disso, políticas posteriores favoreceram a chegada de imigrantes europeus, que receberam muitos privilégios e terras, enquanto a população negra alforriada permaneceu largamente marginalizada. Essa falta de reparação é parte da base estrutural para as desigualdades atuais.
A herança da escravidão permanece viva: a população negra ocupa desproporcionalmente os estratos mais pobres da sociedade, enfrenta discriminação no mercado de trabalho, no acesso à terra, na educação e em outros espaços. A ausência de políticas de reparação efetivas alimenta a perpetuação desse ciclo.
5. Sub-representação negra em postos de poder
A desigualdade racial não se limita à pobreza: ela está presente nas esferas de poder. No Judiciário, por exemplo, dados recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que apenas 14,25% dos juízes se declaram negros. Isso evidencia a exclusão persistente em um dos poderes mais simbólicos para a justiça no Brasil.
No Legislativo, a sub-representação também é clara: cargos parlamentares, estaduais e federais ainda são predominantemente ocupados por pessoas brancas. No Executivo, a situação não é muito diferente: embora existam avanços pontuais, muitos postos de primeiro escalão e liderança ainda carecem de diversidade racial. (Dados apontam para uma participação negra ainda muito limitada nestes espaços).
6. Heróis negros e resistência
Mas a história da população negra no Brasil não é só tragédia: é também resistência, criatividade e heroísmo. Ao longo dos séculos, muitos negros e negras lutaram pela liberdade, pela cidadania e pela dignidade:
- Maria Firmina dos Reis, romancista maranhense, autora do livro Úrsula (1859), considerada uma das primeiras vozes literárias abolicionistas no Brasil.
- Machado de Assis, além de fundador da ABL, foi um intelectual negro cuja obra reflete a complexidade social brasileira. Pesquisadores defendem que sua identidade afrodescendente é central para entender suas escolhas literárias e políticas.
- Ana Maria Gonçalves, como citado, é uma heroína contemporânea, cuja trajetória literária e simbólica inspira novas gerações negras, especialmente mulheres.
Há ainda inúmeras lideranças menos visíveis: ativistas de base, jovens de periferia, educadores, mulheres negras que lutam todos os dias pela justiça racial — esses são os verdadeiros heróis da Consciência Negra.
7. Por que o dia 20 de novembro importa
O Dia Nacional da Consciência Negra não é apenas uma data simbólica: é um chamado à ação. É momento de lembrar que:
- A juventude negra continua sendo alvo de um extermínio silencioso ou explícito, nas periferias, nas favelas, nas operações policiais.
- A desigualdade de oportunidades em educação e trabalho impede que muitos jovens negros realizem seu potencial.
- A mulher negra, especialmente periférica, sofre múltiplas camadas de opressão, e sua ascensão ainda enfrenta enormes barreiras — mesmo quando conquista espaços, como a ABL.
- A dívida histórica do Brasil com a população negra não foi paga — a escravidão deixou marcas profundas que permanecem vivas nas estruturas sociais e econômicas.
- A sub-representação dos negros nos poderes decisórios evidencia o racismo institucional persistente.
- Ainda assim, há resistência: escritores, educadores, ativistas negros que não se conformam com a invisibilidade e lutam por reconhecimento, voz e justiça.
Portanto, neste 20 de novembro, celebrar a Consciência Negra é também denunciar. Denunciar o racismo letal, a exclusão econômica, a desigualdade política. Celebrar, sobretudo, a força e a inteligência do povo negro que resiste, que constrói cultura, que transforma.
Por que o Dia 20 de Novembro existe e quem ele homenageia
Por que essa data?
O 20 de novembro foi escolhido como o Dia Nacional da Consciência Negra por marcar a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Líder do Quilombo dos Palmares, Zumbi simboliza a resistência negra contra a escravidão no Brasil. Diferente do 13 de maio — data da abolição formal, mas sem reparação — o 20 de novembro lembra a luta ativa, organizada e coletiva da população negra pela liberdade.
Quem homenageia?
A data presta homenagem a Zumbi e a todos os heróis e heroínas negras que resistiram à escravidão, ao racismo e à violência estrutural ao longo da história do país. Entre eles:
Dandara dos Palmares, guerreira e estrategista do quilombo.
Maria Firmina dos Reis, pioneira da literatura abolicionista.
Luísa Mahin, figura central nas revoltas negras da Bahia.
André Rebouças, engenheiro e intelectual abolicionista.
Carolina Maria de Jesus, escritora que denunciou a fome e a desigualdade racial nas favelas.
Machado de Assis, intelectual negro fundador da Academia Brasileira de Letras.
A resistência viva: mulheres negras periféricas, jovens negros, movimentos de base, líderes comunitários e artistas que seguem lutando por justiça e direitos.
O 20 de novembro é, portanto, um dia de memória, reparação, denúncia e celebração da resistência negra — passado e presente.
