
Enquanto o mundo desvia o olhar, o Sudão mergulha na maior crise de fome do planeta. A combinação letal de um conflito civil brutal e décadas de degradação ambiental impulsionada pelas mudanças climáticas está a criar uma catástrofe humanitária de proporções épicas, onde milhões de vidas estão em risco iminente.
O Sudão é hoje o epicentro da maior crise de deslocados internos do mundo e caminha a passos largos para se tornar também o palco da maior crise de fome global. Segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA), agência da ONU, quase 18 milhões de pessoas no país enfrentam fome aguda (nível 3 ou superior na escala IPC). Destes, cerca de 5 milhões estão à beira da fome (nível 4), uma situação catastrófica que precede a declaração formal de “famine” (nível 5), o pior cenário possível.
Os alertas, cada vez mais desesperados, ecoam pelos corredores das Nações Unidas. “O tempo está a esgotar-se para milhões de pessoas no Sudão que estão em risco iminente de fome devido aos efeitos devastadores do conflito”, declarou recentemente Cindy McCain, diretora-executiva do PMA. A guerra, que eclodiu em abril de 2023 entre o Exército Sudanês (SAF), liderado pelo General Abdel Fattah al-Burhan, e as Forças de Apoio Rápido (RSF), um grupo paramilitar comandado por Mohamed Hamdan “Hemedti” Dagalo, é o gatilho direto desta tragédia.
O Conflito como Acelerador da Fome
A análise dos fatos é inequívoca: a fome está a ser usada como uma arma de guerra. Relatórios da Reuters e da Al Jazeera detalham como ambos os lados do conflito impõem bloqueios sistemáticos à ajuda humanitária. Cidades como El Fasher, em Darfur, tornaram-se campos de batalha onde armazéns de alimentos são pilhados ou destruídos, e rotas de abastecimento são cortadas deliberadamente, deixando milhões de civis encurralados e sem acesso a mantimentos básicos.
A guerra desmantelou a já frágil economia sudanesa. A produção agrícola, espinha dorsal da subsistência para mais de 65% da população, colapsou. Agricultores foram forçados a abandonar as suas terras, sementes e ferramentas foram roubadas, e a época de plantio crucial foi perdida. Como reportado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a produção de cereais em 2023 foi 46% inferior à média dos cinco anos anteriores, um défice que o país, em estado de guerra, não tem como cobrir com importações.
O Pano de Fundo Climático: Uma Crise Anunciada
Contudo, analisar a crise sudanesa apenas pela lente do conflito armado é ignorar as suas raízes mais profundas e insidiosas. O Sudão está localizado no Sahel, uma das regiões mais vulneráveis do mundo às mudanças climáticas. Durante décadas, antes da guerra atual, o país já enfrentava um ciclo vicioso de secas prolongadas, desertificação e chuvas erráticas e torrenciais que provocavam inundações devastadoras.
Dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) confirmam que as temperaturas no Sahel estão a aumentar 1,5 vezes mais rápido do que a média global. Este aquecimento exacerba a escassez de água e degrada as terras aráveis, intensificando a competição por recursos naturais entre comunidades de agricultores sedentários e pastores nómadas. Conflitos localizados por terra e água, especialmente na região de Darfur, já eram uma realidade muito antes da guerra civil atual, e foram um dos fatores que alimentaram a instabilidade que culminou na crise presente.
A guerra atual, portanto, não surgiu no vácuo. Ela explodiu sobre uma paisagem social e ambiental já fraturada pela pressão climática, transformando vulnerabilidades crónicas numa catástrofe aguda.
Análise Crítica: A Falha da Resposta Internacional e as Divergências
A resposta internacional tem sido criticada como lenta e insuficiente. O plano de resposta humanitária da ONU para o Sudão está drasticamente subfinanciado, recebendo apenas uma fração dos 2,7 mil milhões de dólares necessários. Enquanto isso, potências globais e regionais são acusadas de alimentar o conflito através do apoio a diferentes facções, priorizando interesses geopolíticos em detrimento da vida humana.
Existem pontos de vista divergentes sobre a solução. Os atores humanitários, como a ONU e a Médicos Sem Fronteiras, defendem um cessar-fogo imediato e o acesso humanitário irrestrito e incondicional. Por outro lado, as partes beligerantes usam a negociação do acesso como uma ferramenta de barganha política e militar. Para eles, o controlo sobre os corredores de ajuda é uma vantagem estratégica. Esta divergência fundamental entre a necessidade humanitária e a lógica militar é o que paralisa a ação no terreno.
Projeções e o Futuro Sombrio
As projeções são alarmantes. Sem um cessar-fogo e uma injeção massiva e imediata de ajuda, a FAO e o PMA preveem que várias áreas do Sudão, especialmente em Darfur e Kordofan, atinjam o nível de “famine” nos próximos meses. A crise ameaça desestabilizar toda a região, com um fluxo contínuo de refugiados para países vizinhos como Chade e Sudão do Sul, que já enfrentam as suas próprias crises alimentares e de recursos.
A solução de longo prazo exige uma abordagem em duas frentes:
- Paz e Segurança: Pressão diplomática internacional unificada para forçar um cessar-fogo e iniciar um processo de paz inclusivo.
- Resiliência Climática: Investimento maciço em adaptação climática, com projetos de gestão da água, agricultura sustentável e apoio às comunidades mais vulneráveis para que possam resistir a choques futuros.
A tragédia do Sudão é mais do que uma notícia distante. É um vislumbre assustador de um futuro onde os conflitos armados serão cada vez mais inflamados pela crise climática, criando “tempestades perfeitas” humanitárias. Ignorar o Sudão hoje é ignorar o modelo de crises que podem tornar-se a nova norma num mundo mais quente e instável.