
Líderes do mundo todo se reúnem em Nova Iorque sob um céu pesado de incertezas, mas com a determinação de reacender a chama da esperança global. Ao celebrar oito décadas da ONU, o que está em jogo vai além da memória: trata-se de salvar o multilateralismo antes que ele se torne apenas uma palavra. Nesta Segunda-Feira, inicia-se a Semana de Alto Nível da Assembleia Geral das Nações Unidas — um momento decisivo para avaliar conquistas, enfrentar crises e definir um novo rumo para a ordem internacional. Sob aplausos contidos e olhares sérios, chefes de Estado, diplomatas e ativistas destacam que a paz não é idealismo ingênuo — é urgência prática. Reformas, desigualdades profundas, mudanças climáticas e avanços tecnológicos explosivos entram no palco principal desse encontro histórico.
Nova York — A sede das Nações Unidas, no bairro de Manhattan, parece pulsar com expectativa, quase como se cada pedra da fachada ecoasse o peso de 80 anos de esperanças, lutas e decepções. Flâmulas tremulam resolutas, diplomatas atravessam as passagens entre edifícios carregando discursos engavetados e sonhos urgentes, enquanto mais de 150 chefes de Estado e de governo desembarcam para a Semana de Alto Nível que celebra o octogésimo aniversário da ONU — mas também aponta para os muitos nós ainda a serem desatados.
Carta de São Francisco
Desde a assinatura da Carta de São Francisco, em 1945, as nações fundadoras — 50 no total — estabeleceram uma promessa de cooperação, dignidade humana e justiça. O Brasil foi o único país de língua portuguesa presente desde o primeiro instante, representado por Bertha Lutz assinando como diplomata e cientista.
Hoje, a ONU encara desafios múltiplos: guerras que se prolongam, crises humanitárias urgentes, desigualdades sociais gritantes, a emergência climática acelerando, inteligência artificial e tecnologia redefinindo o poder e o risco.
Cicatrizes físicas
O secretário-geral António Guterres evocou cicatrizes físicas e emocionais dos que presenciaram a Segunda Guerra Mundial — lembrou que muitos primeiros funcionários da ONU tinham marcas visíveis da guerra, e que entenderam logo que paz não é ingenuidade, justiça não é sentimentalismo, poder não é a única política verdadeira. Ele instou pela coragem clara e convicção renovada para manter viva a promessa da paz com justiça.
Annalena Baerbock, presidente da Assembleia Geral, fez um apelo ainda mais duro: não se trata de uma celebração festiva, mas de uma convocação à esperança ativa. Lembrou que, há 80 anos, nações arruinadas ansiavam por ordem, dignidade e direitos humanos; hoje, em face de conflitos como os de Gaza, Ucrânia, Sudão, da violência sexual, do ódio online, a urgência é renovada.
Trumpismo e o fim do multilateralismo
Além disso, um dos desafios mais inquietantes para a nova ordem mundial vem da atual administração dos Estados Unidos, sob Donald Trump, cujas políticas tensionam princípios basilares do multilateralismo. Trump impôs tarifas pesadas contra aliados históricos, desafiou a autonomia de países latino-americanos com ataques diretos ao Brasil e ameaças à Venezuela, e chegou a sugerir a anexação de territórios como o Canadá e a Groenlândia. No conflito em Gaza, sua postura é ainda mais polêmica: apoio incondicional a Israel, mesmo diante das acusações de genocídio, acompanhado de declarações sobre a possibilidade de os EUA “assumirem” o controle da Faixa de Gaza — um gesto visto como afronta grave ao direito internacional e à soberania dos povos.
Iniciativa UN80
Paralelamente, a ONU lançou a Iniciativa UN80, um esforço interno amplo para revisar não apenas metas, mas estruturas, mandatos e a relevância de agências e processos que resistem ao tempo — alguns já ultrapassados. Há reflexões sobre eficiência institucional, custos, descentralização de pessoal e sobre mecanismos para evitar sobreposições ou mandatos redundantes.
Temas específicos emergem com clareza no cronograma desta semana: o debate geral reunirá discursos de representantes de quase todos os 193 Estados-membros; haverá reuniões de alto nível sobre direitos das mulheres — marcando 30 anos desde a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher; sobre o conflito entre Israel e Palestina, com ênfase na viabilidade da solução de dois Estados; e também encontros focados em mudanças climáticas, planos nacionais revisados, economia global justa, desigualdade de gênero, juventude e participação comunitária.
O momento é de confronto com a realidade: antigos ideais estão sendo testados contra novos riscos. Mas também de oportunidade — para que os rostos marcados pela guerra, cidadãos deslocados e jovens sem voz encontrem nestas plataformas um espelho de suas dores e uma esperança para outra ordem mundial possível.
Lula e Trump
Esta semana marca a primeira oportunidade em que os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos se encontrarão no mesmo ambiente desde que tensões bilaterais se agravaram. As políticas de Trump, que incluíram tarifas pesadas sobre produtos brasileiros numa tentativa de interferir em decisões do Judiciário do Brasil e restrições de vistos para autoridades do governo brasileiro, deixaram marcas profundas na diplomacia entre os dois países. O encontro na ONU será observado de perto, pois, além da cortesia diplomática, simboliza um teste à capacidade de reconciliação e negociação entre duas das maiores economias das Américas em um momento de múltiplos desafios globais. Lula já está em Nova York e nesta terça (23) será o primeiro líder mundial a discursar na Assembleia Geral, seguido de Donald Trump.
Reconhecimento da Palestina
Enquanto isso, a comunidade internacional registra uma onda crescente de países que formalizam o reconhecimento do Estado da Palestina, em resposta ao genocídio na Faixa de Gaza. Essa movimentação é percebida como um gesto simbólico de protesto contra a ocupação e as ofensivas militares israelenses, ao mesmo tempo em que pressiona as Nações Unidas e governos do mundo a assumirem posições mais claras diante da crise humanitária, questionando antigos alinhamentos estratégicos e buscando reafirmar princípios de justiça internacional.
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