Marrocos: do Haxixe ilegal ao ouro verde medicinal

Foto de Michael Fischer: https://www.pexels.com/pt-br/foto/fotografia-de-foco-raso-da-planta-cannabis-606506/

**O futuro de milhares de famílias no coração do Rif, montanhas que por séculos foram sinônimo de cultivo ilícito, está sendo reescrito agora. Esta transformação audaciosa promete não apenas erguer economicamente uma das regiões mais pobres do país, mas também remodelar o mapa global da cannabis. O Reino de Marrocos, tradicionalmente um dos maiores produtores mundiais de haxixe, deu um passo estratégico ao legalizar a cultura da planta para fins medicinais e industriais. A medida, formalizada em 2021 pelo Rei Maomé VI, visa posicionar o país africano no bilionário mercado global, protegendo agricultores vulneráveis e, em última análise, combatendo as redes de tráfico que lucravam com a ilegalidade.

A revolução da ANRAC e o salto produtivo

A Agência Nacional de Regulamentação das Atividades Relativas à Cannabis (ANRAC) é a peça-chave dessa mudança, responsável por licenciar e fiscalizar toda a cadeia produtiva, do plantio à exportação. Em um sinal claro do rápido avanço, o número de agricultores autorizados nas províncias do Rif—notadamente Al Hoceima, Chefchaouen e Tétouan—saltou de algumas centenas para cerca de cinco mil em poucos anos. Ademais, a produção legal disparou, atingindo mais de 4.000 toneladas em 2024, com o objetivo de suprir a demanda europeia por produtos como óleos, resinas e cosméticos à base de canabidiol (CBD). A autorização inclui o cultivo de sementes importadas de alto rendimento e a valorização da variedade local, a “Beldia”, reforçando o setor com uma estrutura oficial e controles sanitários rigorosos.

O desafio de transição e o peso da história

Embora a legalização traga dignidade e oportunidades formais, o processo de transição do kif (o nome local da cannabis) da sombra para a luz é complexo. As comunidades do Rif, que por gerações cultivaram a planta por absoluta necessidade econômica, enfrentam altos custos iniciais, exigências burocráticas e a necessidade de conseguir um comprador licenciado antes de plantar. Consequentemente, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de seus relatórios, alerta que o mercado ilícito ainda exerce forte atração. A diferença de preços é gritante: enquanto a matéria-prima legal paga ao agricultor cerca de 50 dirhams (moeda local) por quilo, o haxixe processado e traficado alcança valores até 50 vezes maiores no mercado negro.

Equilíbrio entre o social e o econômico

Apesar dos obstáculos inerentes à regulamentação de um setor historicamente clandestino, o governo marroquino demonstra intenção em priorizar o desenvolvimento social. A lei de 2021 prevê a anistia para milhares de agricultores envolvidos em cultivo ilegal, desde que migrem para a produção legal, o que representa um esforço para aliviar as tensões sociais na região. Por outro lado, a proibição estrita do uso recreativo mantém o foco da política no potencial farmacêutico e industrial, seguindo as diretrizes internacionais e buscando a respeitabilidade do setor junto a parceiros comerciais, como a Europa, principal destino dos produtos marroquinos.

O Legado e a Visão de Longo Prazo

Marrocos é o primeiro país do Oriente Médio e Norte da África (MENA) a embarcar nesta jornada regulatória, e o sucesso do seu modelo será observado de perto em todo o continente. Ao converter uma economia paralela em um setor tributável e formal, as autoridades esperam gerar receitas estáveis, criar um ecossistema de fábricas e laboratórios de alta tecnologia, e, sobretudo, oferecer um caminho de sustentabilidade e estabilidade para milhares de famílias rurais. Em suma, trata-se de um movimento de geopolítica agrícola e social: o antigo fornecedor mundial de haxixe está se reinventando como uma potência do “ouro verde” legal.