Mapa-múndi invertido do IBGE gera polêmica ao desafiar visão tradicional e reforçar papel do Brasil no mundo

Novo mapa-múndi oficial, lançado este mês, inverte a orientação tradicional, coloca o Sul no topo e o Brasil no centro, despertando debates sobre política, identidade nacional, colonialismo, uma crise institucional dentro do IBGE e até piadas internacionais.

O lançamento do novo mapa-múndi oficial pelo IBGE, que traz o Sul no topo e o Brasil centralizado, está causando intensos debates no Brasil e no exterior. A mudança, proposta em um ano-chave para a diplomacia brasileira, desafia séculos de convenções cartográficas e propõe uma nova perspectiva: o Sul Global como protagonista.

Crise interna e repúdio dos servidores

Em mais um capítulo da crise interna que se arrasta há meses no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), técnicos do órgão manifestaram repúdio à iniciativa da gestão do atual presidente, Marcio Pochmann, de lançar uma nova versão do mapa-múndi oficial. A publicação volta a trazer o Brasil no centro do mundo, mas desta vez com a perspectiva invertida, com o Sul figurando no topo da imagem. Segundo parte dos trabalhadores, atos da atual direção configuram desvio institucional.

De acordo com a executiva nacional do sindicato de trabalhadores do instituto, o Assibge-SN, a publicação não foi construída pelas áreas técnicas e parece atender à agenda pessoal de Pochmann. Em nota, o sindicato afirma:

“O mapa em si não apresenta nenhuma incorreção técnica, e poderia compor, em conjunto com outras representações, atlas e materiais didáticos, trazendo um debate bem-vindo sobre as representações cartográficas e sua expressão política. O que avaliamos como bastante problemático é o lançamento de um produto que não foi construído pelas áreas técnicas, não teve um lançamento adequado, e parece atender a agenda pessoal do presidente Marcio Pochmann”.

Já o núcleo sindical dos servidores lotados no edifício alugado pelo IBGE na Avenida Chile, no centro do Rio de Janeiro, divulgou um manifesto em repúdio ao lançamento, que considera “um gesto sem respaldo técnico reconhecido pelas convenções cartográficas internacionais”. Segundo o manifesto,

“Trata-se de uma iniciativa que, em vez de informar, distorce; em vez de representar a realidade com rigor, cria uma encenação simbólica que compromete a credibilidade construída pelo IBGE ao longo de décadas de trabalho sério, imparcial e respeitado globalmente”.

Os servidores ainda ressaltam que a atual polêmica “não é um caso isolado”, referindo-se a outros episódios recentes em que alertas técnicos foram ignorados pela gestão. Segundo apontam, os atos recentes teriam violado princípios constitucionais da administração pública, como finalidade administrativa, impessoalidade e moralidade.

“Não há desculpa técnica, jurídica ou pedagógica para esse tipo de prática. Nenhum país se torna mais respeitado por estar no centro de um papel. A grandeza internacional se conquista com políticas públicas consistentes, instituições confiáveis e dados transparentes – não com encenações visuais”, diz o núcleo sindical.

Repercussão internacional: mapa vira piada nas redes

O mapa-múndi invertido pelo presidente do IBGE, Márcio Pochmann, também voltou a ser tema de piada internacional esta semana, com sua reprodução nas redes sociais do perfil Terrible Maps. O perfil, especializado em fazer humor com “mapas terríveis”, soma quase 3,5 milhões de seguidores no Instagram, Facebook e X (antigo Twitter).

“Mapa mundial de acordo com o governo brasileiro”, escreveu o Terrible Maps, ao expor o mapa com o Brasil ao centro e a América do Norte no local onde tradicionalmente aparecem os países sul-americanos e o Polo Sul.

A postagem, publicada no fim da manhã, já acumulava quase dois milhões de visualizações até a noite de domingo. Nos comentários, internautas ironizaram a iniciativa de Pochmann de “ressaltar a posição atual de liderança do Brasil em importantes fóruns internacionais como no BRICS e Mercosul e na realização da COP 30 em 2025”.

Por que a inversão do mapa gera tanta discussão?

O motivo do debate vai além da simples orientação geográfica. Ao inverter o mapa tradicional, o IBGE rompe com o padrão eurocêntrico consagrado desde o século 16, quando a Europa passou a se posicionar no topo e ao centro dos mapas. Segundo especialistas ouvidos pelo O Globo, BBC, CNN Brasil e The Guardian, essa convenção cartográfica não é neutra: ela reflete e reforça valores de poder, riqueza e centralidade associados ao Norte Global.

De acordo com a diretora de Geociências do IBGE, Maria do Carmo Dias Bueno, “o apontamento dos pontos cardeais é uma convenção cartográfica e não constitui erro técnico”. A escolha, segundo ela, foi proposital e busca questionar os vieses históricos que sempre colocaram o Norte e a Europa em posição superior.

O novo mapa-múndi destaca ainda o protagonismo do Brasil em 2024, ao sediar eventos como a presidência do Brics, do Mercosul e a COP30. Cidades brasileiras ganham destaque, reforçando o papel do país no cenário internacional e a centralidade do Sul Global nos debates globais.

Identidade, política e colonialismo em debate

Especialistas em cartografia e geopolítica observam que mapas são ferramentas de poder e comunicação. O professor Luis Henrique Leandro Ribeiro, da Uerj, afirma que, ao centralizar o Brasil e colocar o Sul no topo, o IBGE “desnaturaliza” a visão tradicional do mundo, abrindo espaço para novas interpretações e interesses geopolíticos.

A inspiração do mapa vem de obras como “A América Invertida”, do artista uruguaio Joaquin Torres García, e das ideias de pensadores como Paulo Freire e Milton Santos, que defendiam a necessidade de “sulear” o pensamento e desafiar a visão colonialista.

No entanto, críticos apontam possíveis desvantagens. Como destacou a BBC News Brasil, a inversão pode gerar estranhamento e dificultar a compreensão para leitores acostumados ao modelo tradicional. Além disso, a mudança escancara o papel dos mapas como instrumentos discursivos capazes de reescrever ordens mundiais e provocar incômodo em lideranças acostumadas ao status quo.

Mapas não são neutros

A discussão em torno do novo mapa-múndi do IBGE evidencia que mapas nunca foram neutros. Eles refletem interesses políticos, econômicos e culturais. Como destaca o geógrafo Yves Lacoste, citado por especialistas, “mapas são ferramentas dotadas de poder”.

Ao lançar um mapa que coloca o Brasil no centro e o Sul no topo, o IBGE não apenas propõe uma nova forma de se ver o mundo, mas também afirma o país como protagonista em um contexto global em transformação. A medida, ao mesmo tempo que provoca reflexão, desafia tradições e estimula o debate sobre identidade, colonialismo e geopolítica — e, agora, também inspira memes e ironias nas redes.