A nova enciclopédia digital criada por Elon Musk, chamada Grokipedia, vem gerando preocupação entre especialistas em tecnologia, história e direitos humanos. Lançada como uma alternativa “mais confiável” que a Wikipedia, a plataforma reúne centenas de milhares de verbetes produzidos pela inteligência artificial Grok — mas uma análise recente do The Guardian britânico mostra que muitos conteúdos reforçam ideias de extrema direita, pseudociência racial e interpretações distorcidas de fatos históricos.
Promessa de neutralidade cai por terra
A Grokipedia nasceu com a proposta de oferecer ao público uma enciclopédia “sem viés”, segundo Musk. Porém, no formato atual, todo o processo de criação e verificação é feito pela própria IA, sem supervisão independente. O resultado, segundo especialistas, é um ambiente que mistura dados reais com interpretações ideológicas, apresentadas ao leitor como “fatos verificados”.
Pesquisadores apontam ainda que partes de artigos tradicionais são reutilizadas, mas acompanhadas de trechos que reescrevem contextos históricos, suavizam biografias de extremistas ou justificam discursos de ódio sob uma perspectiva supostamente científica.
Perfis extremistas ganham roupagem neutra
Entre as distorções mais graves, análises mostram que a plataforma:
- minimiza o histórico de líderes ligados ao racismo e ao supremacismo branco;
- descreve teorias de eugenia e hierarquia racial como se fossem debates científicos contemporâneos;
- reforça slogans supremacistas sob o rótulo de “conceitos sociológicos”;
- apresenta comunidades segregacionistas como exemplos de “coesão social”.
Especialistas alertam que dar a esses conteúdos aparência de neutralidade é perigoso, porque naturaliza discursos antes restritos a grupos radicais.
Historiadores denunciam manipulação da memória coletiva
Para historiadores, a Grokipedia abre um precedente preocupante: uma enciclopédia de grande alcance, produzida por IA e controlada por um único grupo empresarial, pode moldar percepções históricas de milhões de usuários.
A preocupação cresce diante do risco de que outras IAs, plataformas digitais e até ferramentas educacionais passem a usar a Grokipedia como referência, criando um ciclo de desinformação automatizada.
Uma disputa pelo controle da verdade
A polêmica sobre a Grokipedia não é apenas tecnológica. Ela toca em uma questão central do século 21: quem define o que é “verdade” em um ambiente dominado por inteligências artificiais?
Para especialistas, o projeto de Musk evidencia a urgência de discutir ética, transparência e responsabilidade no desenvolvimento de sistemas capazes de influenciar o conhecimento humano em escala global.
A Grokipedia, que prometia ser um avanço na democratização do conhecimento, levanta o alerta para o perigo de plataformas que misturam inteligência artificial, falta de supervisão e viés ideológico. Em um mundo já saturado de desinformação, a sociedade enfrenta agora um novo desafio: impedir que enciclopédias automáticas se tornem ferramentas de manipulação histórica e normalização de extremismos.
ENTENDA
O Que a Reportagem do Guardian Revela
- Escala e Controle da Grokipedia
- A Grokipedia já tem mais de 800 mil entradas, todas presumivelmente “verificadas” pelo modelo de IA Grok.
- Cada artigo afirma ter sido “fact-checked” pelo Grok, mas há fortes indícios de que muitos textos reforçam visões ideológicas muito específicas.
- Quando contatada pela reportagem, a xAI respondeu rapidamente com uma mensagem automática: “Legacy Media Lies” (“a mídia tradicional mente”).
- Reabilitação de Figuras Extremistas
- A Grokipedia apresenta figuras como Jared Taylor (fundador do American Renaissance) sob uma luz positiva, descrevendo-o como alguém que “intelectualizou a preservação branca” de forma “não violenta”.
- No caso do Kevin MacDonald, cuja obra é amplamente criticada (e classificada por muitos como conspiratória e antissemita), a Grokipedia reinterpreta seu trabalho como uma “aplicação de princípios evolucionários ao comportamento social humano” — eliminando praticamente toda a crítica recebida por ele em contextos acadêmicos.
- Sobre o David Irving, conhecido negador do Holocausto, a enciclopédia de Musk usa uma narrativa de “resistência intelectual”, dizendo que ele simboliza a “dissidência acadêmica” contra críticas institucionais.
- Também há elogios a William Luther Pierce, figura neo-nazista, com a Grokipedia descrevendo sua organização (National Alliance) como defensora de “herança racial europeia” e apontando para supostos méritos “científicos” em sua visão racial.
- E ainda a Grokipedia aborda slogans abertamente supremacistas — como os “quatorze palavras” — apresentando justificativas com base em biologia evolutiva (“kin selection”, “fitness inclusiva”), em vez de condenar explicitamente seu caráter de ódio.
- Promoção de “Nacionalismo Racial” e Eugenia
- A enciclopédia justifica ideologias racialistas com argumentos pseudocientíficos: por exemplo, afirma que a “uniformidade étnica” favorece “confiança interpessoal”, “coesão social” e até “redução da criminalidade”.
- Defende ideias associadas à eugenia racial, dizendo que preservar perfis genéticos “adaptados” é comparável à conservação de espécies na biologia — uma retórica bastante controversa e historicamente associada a regimes racistas.
- Críticos acadêmicos citados pelo Guardian alertam que esses textos são uma forma de “branqueamento intelectual” de ideologias extremistas, mascaradas por uma linguagem “científica” ou “objetiva”.
- Perigos do Projeto
- Especialistas ouvidos pela reportagem consideram a Grokipedia perigosa porque lave ideologias de ódio (extremismo) sob o disfarce de “conhecimento neutro” ou “fatos científicos”.
- A normalização de discursos supremacistas dentro de uma enciclopédia pode legitimar essas ideias para usuários que buscam “conhecimento confiável”.
- Há também o risco de que plataformas, IAs ou outros sistemas passem a usar conteúdos da Grokipedia como fonte, propagando desinformação e vieses perigosos.
Contextualização Mais Ampla: Motivações de Musk
- Elon Musk, conforme relatos anteriores, tem uma visão clara de Grokipedia como uma alternativa à Wikipedia, que ele acusa de ser ideologicamente “propagandista”.
- Musk já expressou simpatias ou aproximações com figuras de direita e extrema direita, incluindo discursos polarizados sobre imigração, raça e identidade.
- Por trás disso, há uma disputa maior sobre quem define o que é “verdade” na era digital: ele parece querer consolidar influência não apenas como bilionário da tecnologia, mas também como arquiteto de um repositório de conhecimento, com controle sobre narrativas históricas, sociais e políticas.
Críticas e Reações
- Acadêmicos apontam que muitos artigos da Grokipedia são cópias (em parte) de artigos da Wikipedia, mas com inserções que favorecem a ideologia nacionalista branca.
- A Heidi Beirich, cofundadora do Global Project on Hate and Extremism, criticou fortemente a Grokipedia como “disseminadora de desinformação de ódio” e propaganda de extrema direita.
- Outros alertam: a enciclopédia de Musk não é apenas um projeto acadêmico alternativo — pode se tornar um veículo de radicalização, especialmente se ganhar relevância ou ser referenciada por outras IAs ou buscadores.
Conclusão
A investigação do Guardian sobre a Grokipedia destaca um problema grave: a criação de uma enciclopédia gerada por IA não é, necessariamente, neutra. No caso de Musk, há evidência de que essa plataforma foi construída — ou ao menos está sendo usada — para legitimar visões de extrema direita e pseudociência racial.
Este não é apenas um debate sobre tecnologia, mas sobre poder simbólico e epistemológico: quem decide o que é “fato”? Quem tem autoridade para definir a narrativa da história, da raça, da identidade? Se a Grokipedia se consolidar, poderá influenciar gerações futuras sobre como se vêem diferenças raciais, conflitos históricos e ideologias políticas.
