
A revolução da inteligência artificial vem transformando a paisagem digital global — e, cada vez mais, a física também. No centro dessa transformação estão os mega data centers, instalações colossais responsáveis por armazenar, processar e distribuir volumes astronômicos de dados. No Brasil, esse avanço se intensifica: grandes empresas como Amazon, Microsoft, Oracle e ByteDance estão por trás de dezenas de novos centros em construção. Mas o que parece uma corrida pelo progresso esconde um dilema de fundo: o impacto ambiental crescente e os riscos de soberania digital em um cenário de guerra comercial global.
Uma infraestrutura invisível, mas devastadora
Ao contrário das fábricas ou refinarias, os data centers operam em silêncio e, à primeira vista, parecem inofensivos. Porém, seu apetite por recursos é gigantesco. Um único centro pode consumir a mesma quantidade de energia que uma cidade de médio porte, além de milhões de litros de água diariamente para resfriamento de servidores.
Segundo estimativas internacionais, a infraestrutura de IA deve exigir mais de 600 TWh anuais até 2030, provocando um aumento global de emissões de carbono em até 3,4% — e isso em um momento em que o mundo clama por corte de emissões. No Brasil, onde a matriz energética é majoritariamente limpa (89% renovável), esse avanço poderia parecer positivo. Mas a realidade é mais complexa.
Em regiões como o Nordeste, onde a escassez hídrica é crônica, a instalação de data centers — como o da chinesa ByteDance, em Caucaia (CE) — gera preocupações. Ambientalistas apontam que o projeto pode consumir até 5 milhões de litros de água por dia, enquanto comunidades vizinhas sofrem com racionamento. A infraestrutura de refrigeração, ainda baseada majoritariamente em métodos convencionais, desperdiça até 80% da água utilizada.
Além disso, a produção e descarte de equipamentos eletrônicos, incluindo baterias, servidores e cabeamentos, alimenta um ciclo de mineração predatória e geração de lixo eletrônico tóxico, que o Brasil ainda não sabe lidar adequadamente.
Data centers e o jogo geopolítico das tarifas
Se os riscos ambientais são visíveis, um outro tipo de ameaça caminha em paralelo — e de forma ainda mais silenciosa: a perda de soberania digital. Em 2025, o presidente Donald Trump anunciou uma política de tarifas recíprocas de até 50% para importações de países que, na visão dos EUA, adotam barreiras comerciais injustas contra produtos americanos.
Na esteira desse pacote, surgiram negociações bilaterais em que a liberação de mais data centers passou a ser usada como moeda de troca. Países como México e Canadá conseguiram negociar alívios tarifários com base em concessões para abrigar infraestrutura tecnológica norte-americana, especialmente voltada à IA.
No Brasil, analistas temem que o mesmo ocorra: o governo pode ser pressionado a acelerar licenças ambientais, reduzir exigências regulatórias ou oferecer incentivos fiscais para atrair investimentos em data centers, em troca de flexibilizações tarifárias que beneficiem o agronegócio ou setores industriais. A conta, no entanto, seria paga por comunidades locais e pelo meio ambiente.
O CLOUD Act e o risco à soberania dos dados
Mesmo que a instalação física dos data centers seja feita em solo brasileiro, os dados armazenados neles não estão livres da jurisdição estrangeira. Isso porque desde 2018 vigora nos Estados Unidos o CLOUD Act (Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act), que permite ao governo norte-americano exigir acesso a dados armazenados por empresas dos EUA, independentemente do local físico dos servidores.
Ou seja: mesmo que um centro da Microsoft esteja em Hortolândia (SP) ou da Amazon em São Paulo, os dados ali presentes podem ser acessados legalmente pelo Departamento de Justiça dos EUA, sem necessidade de autorização do Brasil. Isso afeta não apenas informações pessoais, mas também dados empresariais, industriais e, eventualmente, de órgãos públicos.
A combinação entre política comercial agressiva e o poder das Big Techs revela um quadro em que o Brasil oferece recursos — solo, energia, incentivos —, mas não retém nem o valor agregado nem o controle sobre os dados. Trata-se de uma forma contemporânea de colonialismo digital.
Casos em andamento no Brasil
Vários exemplos reforçam a urgência do debate:
- ByteDance (TikTok) – Caucaia (CE): Em meio a crises hídricas, o projeto avança sem consulta pública adequada, com preocupações sobre o uso intensivo de água.
- Microsoft – Hortolândia (SP): Recebe bilhões em incentivos e promete energia renovável, mas não apresenta relatórios ambientais detalhados.
- HostDime – João Pessoa (PB): Exemplo positivo, com uso exclusivo de energia solar e reúso de água.
- Oracle – Vinhedo (SP) e AWS – São Paulo: Em expansão acelerada, ainda sem exigência legal de transparência sobre consumo de recursos.
Um modelo insustentável
A ausência de regulação ambiental específica para data centers no Brasil favorece essa expansão sem contrapartidas. Hoje, essas instalações não estão sujeitas a licenciamento ambiental obrigatório nem precisam apresentar estudos de impacto sobre água, solo, energia ou resíduos. Não há exigência legal de consulta às comunidades afetadas. Tampouco existem limites para sua concentração em áreas vulneráveis.
A política externa atual, aliada à disputa global por protagonismo digital, pode transformar o Brasil num campo aberto para a infraestrutura das Big Techs, sem que o país tenha garantias sobre privacidade, soberania ou sustentabilidade.
Caminhos para o equilíbrio
Especialistas apontam soluções possíveis:
- Incluir os data centers nas exigências do licenciamento ambiental completo;
- Exigir relatórios anuais de uso de energia, água e emissões;
- Condicionar incentivos fiscais ao uso de energia renovável e tecnologias sustentáveis, como resfriamento líquido e reaproveitamento de calor;
- Garantir transparência sobre os contratos de instalação e acordos comerciais;
- Proteger a soberania dos dados, limitando a aplicação extraterritorial do CLOUD Act por meio de acordos bilaterais;
- Estabelecer uma política nacional de dados com controle público e armazenamento soberano.
O Brasil vive hoje um dilema: abrir as portas para a infraestrutura tecnológica que sustentará o futuro — ou manter controle sobre seus recursos, comunidades e dados. Não se trata de rejeitar a inovação, mas de exigir que ela venha com regras, transparência e respeito ao meio ambiente e à soberania nacional.
A corrida pelos dados não pode atropelar os direitos de quem vive onde os cabos chegam e a água some. Se a inteligência artificial é o motor da nova economia, que ela funcione com responsabilidade, e não como um novo vetor de desigualdade.