
Imagine um sistema de saúde sem a presença constante e cuidadosa de um enfermeiro ao lado do leito, na linha de frente da atenção básica ou na complexidade de uma UTI. Essa realidade, que parece distante para alguns, é uma ameaça crescente em vastas regiões do mundo, incluindo o Brasil. Um novo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) acende um alerta vermelho sobre a distribuição profundamente desigual desses profissionais essenciais. O documento revela que 78% dos enfermeiros estão concentrados em países que representam menos da metade da população global, criando um paradoxo de excesso e escassez. Para especialistas, essa concentração não é um mero acaso, mas sim um sintoma de falhas estruturais que comprometem o direito universal à saúde.
O Cenário Global: Um Mundo de Contrastes
A saúde global deu um passo à frente, mas de forma descompassada. De acordo com o mais recente relatório State of the World’s Nursing, da Organização Mundial da Saúde, o planeta conta hoje com 29,8 milhões de profissionais de enfermagem, um número recorde alcançado em 2023. Contudo, para além do número bruto, os dados expõem uma geografia da assistência profundamente injusta, dividida entre nações que concentram recursos e outras que assistem a um êxodo de seus talentos mais vitais.
Por um lado, países mais ricos, especialmente na Europa e na América do Norte, funcionam como um ímã para profissionais da saúde. Eles concentram a esmagadora maioria dos 29,8 milhões de enfermeiros, mas enfrentam seus próprios desafios. Com populações em rápido envelhecimento, a demanda por cuidados de longo prazo e especializados cresce exponencialmente, pressionando sistemas como o NHS no Reino Unido ou o sistema de saúde alemão, que dependem cada vez mais de recrutamento internacional para preencher suas vagas.
Por outro lado, o cenário em países de baixa e média renda, principalmente na África Subsaariana e em partes do Sudeste Asiático, é dramático. Essas nações, que já lutam com uma alta carga de doenças infecciosas e recursos limitados, são as mais afetadas pela carência de profissionais. A Região Africana da OMS, por exemplo, possui a menor densidade de enfermeiros do mundo. Esse quadro é agravado pelo fenômeno conhecido como “fuga de cérebros”: enfermeiros treinados a um custo significativo para seus países de origem são atraídos por salários mais altos e melhores condições de trabalho no exterior, deixando para trás um sistema de saúde ainda mais fragilizado.
Apesar do cenário preocupante, a OMS aponta uma leve melhora no déficit global, que caiu de 6,2 milhões em 2020 para 5,8 milhões em 2023, com projeção de queda para 4,1 milhões até 2030. No entanto, a organização ressalta que essa redução não resolve o problema central da má distribuição, que continua a ser uma das principais barreiras para se atingir a cobertura universal de saúde.
O Espelho Brasileiro: Concentração e Desafios Estruturais
Essa dinâmica global de polos de atração e áreas de carência se repete, em escala, dentro das fronteiras brasileiras. O país, com sua imensidão continental, reflete perfeitamente o diagnóstico da OMS. Dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) indicam que o Brasil possui 783.566 enfermeiros registrados. O problema, assim como no panorama mundial, não está no número total, mas em sua distribuição.
O estado de São Paulo, o mais rico da federação, concentra sozinho 191.160 desses profissionais, o que representa mais de 24% de toda a força de trabalho da enfermagem no país. Essa migração interna em busca de melhores salários e infraestrutura deixa um vácuo assistencial em regiões mais pobres e remotas, como o Norte e o Nordeste, exatamente onde os serviços de saúde são mais necessários e, paradoxalmente, mais frágeis.
Para Raul Canal, presidente da Anadem (Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética), a questão transcende a simples logística de pessoal. “A má distribuição dos profissionais de enfermagem afeta o acesso à saúde, assim como a má distribuição de médicos pelo Brasil. Não é apenas uma questão de má gestão de recursos humanos, mas um reflexo de falhas estruturais na política pública de saúde”, analisa Canal.
Vozes Especializadas: O Diagnóstico e as Soluções
A análise de especialistas como Raul Canal aponta para a urgência de uma ação coordenada do Estado. A solução não passa por medidas coercitivas, mas pela criação de um ambiente propício para que o profissional se sinta atraído e seguro para atuar fora dos grandes centros.
“É dever do Estado assegurar o acesso justo aos recursos humanos da saúde”, defende o presidente da Anadem. Ele sugere a criação de mecanismos legais que incentivem a cooperação entre a União, os estados e os municípios, com o objetivo de fortalecer a atenção básica — a porta de entrada do SUS. “Essas medidas devem ser acompanhadas de infraestrutura adequada, plano de carreira estruturado e segurança no exercício profissional”, completa.
Isso significa investir em postos de saúde bem equipados, oferecer salários competitivos e criar planos de cargos que valorizem a permanência do profissional na região. Sem esses pilares, a tendência de concentração nos eixos mais desenvolvidos tende a se perpetuar, aprofundando o abismo no acesso à saúde. O relatório da OMS, portanto, serve como um chamado à ação global e local. O desafio para o Brasil e para o mundo é transformar esse diagnóstico em políticas eficazes, garantindo que o cuidado essencial da enfermagem chegue a quem mais precisa, independentemente do código postal ou da nacionalidade.