Abayomi: Mais que um brinquedo, um manifesto de identidade e resistência negra

Símbolo de “encontro precioso”, as bonecas de pano feitas de nós transcendem o artesanato e se consolidam como ferramenta pedagógica vital na luta antirracista no Brasil.

Em um cenário onde a representatividade negra ganha cada vez mais protagonismo nas pautas sociais e educacionais do Brasil, pequenos pedaços de retalhos pretos, unidos apenas por nós — sem costura ou cola —, emergem como gigantes culturais. As bonecas Abayomi, muito mais do que objetos lúdicos, tornaram-se vetores de resgate histórico e fortalecimento da identidade afro-brasileira.

Apesar dessa força cultural e histórica, a ignorância doentia de indivíduos criminosos tentam transformá-las em algo ruim. Um canalha fez um post dizendo que as abayomis eram feitiçaria e colocava em risco as crianças brancas. Isso, com as celebrações da Consciência Negra ecoando em escolas, museus e redes sociais e a busca pelo termo “Abayomi” disparando nos mecanismos de pesquisa e nos Trending Topics, refletindo um movimento de reconexão com a ancestralidade.

Mas, afinal, o que sustenta o fascínio e a importância dessas bonecas?

Do Mito à criação de Lena Martins

É comum encontrar na internet e em rodas de conversa uma narrativa romântica e dolorosa: a de que as Abayomi teriam nascido nos porões dos navios negreiros (tumbeiros), feitas por mães escravizadas que rasgavam as próprias saias para criar amuletos para seus filhos. Uma força poética inegável sobre o afeto em meio à tragédia. Entretanto, existe uma versão mais direta, resultado da apuração jornalística e histórica. Ela aponta para uma origem contemporânea e urbana, datada da década de 1980.

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As bonecas Abayomi teriam sido criadas por Lena Martins, artesã maranhense radicada no Rio de Janeiro. Em 1987, militante do Movimento de Mulheres Negras, Lena teria criado a técnica a partir da necessidade de confeccionar brinquedos que refletissem a estética e a identidade negra, algo escasso no mercado da época.

“A boneca não veio do navio negreiro. Ela foi criada para conscientizar, para trazer alegria e autoestima. É uma ferramenta política e lúdica,” reafirmou Lena Martins em diversas entrevistas a portais de memória da cultura negra e ao acervo do jornal O Globo.

O nome Abayomi tem origem iorubá e significa “encontro precioso” (abay = encontro, omi = precioso). A boneca teria nascido, portanto, não no mar, mas nas ladeiras de Santa Teresa, no Rio, como um ato de design afirmativo e empoderamento feminino.

A Técnica dos Nós: Sustentabilidade e Simbolismo

A confecção de uma Abayomi segue uma tradição estrita passada por Lena e pela Cooperativa Abayomi:

  1. Material: Sobras de tecido (retalhos), promovendo a sustentabilidade.
  2. Cor: Sempre tecido preto para o corpo, celebrando a pele negra.
  3. Estrutura: Feita exclusivamente de nós. As tranças, os turbantes e as vestes coloridas são amarrados, simbolizando a união e a complexidade da tecitura social.
  4. Sem rosto: As bonecas não possuem olhos ou boca desenhados. Segundo a tradição, isso permite que cada pessoa projete nela a sua própria identidade ou a de um ancestral, pluralizando as etnias africanas.

Impacto na Educação e a Lei 10.639

Desde a promulgação da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas, as Abayomi deixaram de ser apenas peças de artesanato para se tornarem material paradidático essencial.

Educadores de todo o país utilizam as oficinas de confecção das bonecas para:

  • Discutir o racismo estrutural.
  • Ensinar sobre a geografia e história da África.
  • Trabalhar a coordenação motora fina.
  • Debater padrões de beleza e estética.

Dados de portais educacionais e observatórios de negritude indicam que oficinas de Abayomi são uma das atividades mais requisitadas em unidades do SESC e escolas públicas durante o mês de novembro, servindo como porta de entrada para debates mais profundos sobre a diáspora africana.

Reações e Desdobramentos Atuais

Nas redes sociais, a hashtag #Abayomi agrupa milhares de publicações que vão desde tutoriais de “faça você mesmo” até teses acadêmicas sobre design social. O fenômeno também impulsionou o empreendedorismo negro (Black Money). Artesãs negras têm utilizado a técnica para gerar renda, criando versões chaveiro, quadros e bonecas colecionáveis, ressignificando a economia criativa.

Especialistas em antropologia visual apontam que a Abayomi preenche uma lacuna deixada pela indústria de brinquedos tradicional. Enquanto o mercado demorou décadas para incluir bonecas negras em suas prateleiras, a Abayomi sempre esteve lá, acessível, barata e carregada de significado.

O Futuro de um Ícone

A boneca de nós caminha para se tornar um patrimônio imaterial. Instituições culturais já discutem a importância de salvaguardar a técnica original de Lena Martins, protegendo a propriedade intelectual e cultural da criação, ao mesmo tempo em que incentivam sua disseminação popular.

Em um mundo cada vez mais digital, o ato manual de dar um nó em um pedaço de pano preto para criar uma figura humana é um gesto de resistência analógica e ancestral. Como disse a própria criadora, as Abayomi são “gotas de nós”; e cada nó dado é um laço que se aperta contra o esquecimento da cultura afro-brasileira.