A longa luta pela insulina: do milagre que salvou crianças ao mercado que ainda ameaça vidas

O milagre que interrompeu a morte — e o mercado que insiste em cobrá-lo caro.

Duas cenas separadas por um século revelam o melhor e o pior da humanidade. Em uma, médicos caminham por um corredor silencioso onde crianças em coma diabético aguardam a morte inevitável. Em outra, famílias americanas racionam insulina porque não conseguem pagar por um frasco que pode custar até 300 dólares. Entre elas, está a história de uma descoberta que mudou o mundo — e de como o mundo mudou pouco em relação ao acesso justo à saúde.

A insulina nasceu como gesto científico e humanitário. Mas, ao longo do tempo, transformou-se em um símbolo global da tensão entre o valor da vida e o preço que o mercado impõe. Hoje, mais de 100 anos depois, a pergunta ecoa com ainda mais força: como um medicamento criado para ser de todos se tornou inacessível para tantos?

A descoberta que salvou a infância

No início da década de 1920, o diagnóstico de diabetes tipo 1 era praticamente uma sentença de morte. Sem tratamento eficaz, crianças eram submetidas a dietas severas — verdadeiros regimes de fome — que prolongavam a vida por meses, mas retiravam qualquer possibilidade de infância. O quadro só mudou quando Frederick Banting, Charles Best, John Macleod e James Collip entraram nos hospitais de Toronto com um pequeno frasco nas mãos: a primeira insulina purificada.

O relato histórico é comovente. Aplicada a cada criança, a substância parecia reverter a morte diante dos olhos dos médicos: dedos que se moviam, olhos que se abriam, choros que ecoavam em leitos até então silenciosos. O corredor de morte se transformou, enfim, em corredor de vida.

Mas o feito científico, por si só extraordinário, não foi o gesto mais admirável. Ao serem questionados sobre a patente, Banting e sua equipe decidiram vendê-la à Universidade de Toronto por um valor simbólico: 1 dólar. A intenção era clara — garantir que a insulina fosse acessível à humanidade, e não propriedade de empresas.

Banting resumiu a decisão em uma frase que se tornaria emblemática: “A insulina não me pertence. Pertence ao mundo.”

De presente para a humanidade à mercadoria de alto preço

Mais de um século depois, a insulina continua salvando vidas. Estima-se que centenas de milhões de pessoas tenham sobrevivido graças à descoberta de 1921. No entanto, a promessa de acesso universal foi traída pela lógica de mercado, sobretudo nos Estados Unidos.

Enquanto países como Canadá, Reino Unido e Alemanha regulam preços, o sistema americano permite que fabricantes estabeleçam valores muito acima do custo real. Assim, frascos que deveriam custar menos de 10 dólares — segundo estudos de produção citados por centros como Yale e Mayo Clinic — chegam às prateleiras por mais de 300 dólares. O resultado é cruel: milhares de pessoas racionam doses; algumas morrem por falta delas.

Relatórios recentes de organizações internacionais, como a ONU e a Federação Internacional de Diabetes, apontam que o acesso desigual à insulina é um dos maiores desafios sanitários do século XXI. Em regiões de baixa renda, a situação é ainda mais grave: interrupções de abastecimento, preços abusivos e ausência de políticas públicas expõem milhões de pacientes ao risco permanente.

Desigualdade global: uma crise silenciosa

Embora os Estados Unidos concentrem os casos mais notórios de preços elevados, a desigualdade no acesso à insulina é global. A Organização Mundial da Saúde alerta que, em países africanos e latino-americanos, muitos pacientes percorrem longas distâncias para encontrar o medicamento — e frequentemente retornam sem ele.

Ainda assim, existem avanços. Em diversos países, programas de regulação e produção nacional desafiam o monopólio das grandes farmacêuticas. No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) garante insulina de forma gratuita. Entretanto, especialistas alertam que o cenário pode ser frágil diante de crises econômicas e tensões internacionais que afetam o mercado farmacêutico.

A herança moral de Banting

A história da insulina é mais do que a trajetória de um medicamento. Ela é um espelho do embate entre ciência, humanidade e economia. Mostra que, enquanto a descoberta científica pode iluminar a vida, decisões políticas e mercadológicas podem apagar essa luz.

Banting, que recebeu o Prêmio Nobel em 1923, acreditava que a vida e a saúde eram bens sagrados, acima de qualquer lucro. Sua visão continua atual — e urgente. Em um mundo onde até mesmo o ar-condicionado tem etiqueta de preço, a insulina deveria nos lembrar que algumas coisas existem para serem compartilhadas, não vendidas.

A insulina salvou corpos. O gesto de Banting salvou a alma da ciência. E revisitar essa história é, também, um convite a reconstruir o compromisso ético que ele deixou como legado.