Projeto antifacção defendido por governadores limita ação da PF e fortalece política de espetáculo, dizem especialistas.
Enquanto operações policiais de alto impacto seguem ocorrendo nas periferias do país — com helicópteros, caveirões e índices de letalidade recordes — avança no Congresso um projeto de lei que pode enfraquecer o combate ao crime organizado em sua estrutura de maior escala.
Trata-se do projeto antifacção, relatado pelo deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP), ex-secretário de Segurança Pública de Tarcísio de Freitas em São Paulo. A proposta, apoiada principalmente por governadores de direita, restringe a atuação da Polícia Federal nos estados, condicionando sua entrada em investigações locais à autorização dos governos estaduais.
A mudança é vista por especialistas, pelo Ministério da Justiça e por delegados da própria PF como uma tentativa de deslocar o eixo do combate ao crime das estruturas de inteligência e investigação financeira para ações policiais de efeito visual imediato, centradas no varejo do crime — o “soldado da favela”, o pequeno traficante, o operador local.
Quem é Derrite
Guilherme Derrite é ex-policial militar e ficou nacionalmente conhecido como defensor de políticas de mão dura na segurança pública. Ele é um dos principais nomes da segurança pública alinhados ao grupo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e deixou o cargo na secretaria de Segurança Pública do governo do Tarcísio de Freitas (Republicanos) apenas para assumir a relatoria do projeto. No comando da pasta em São Paulo, sua gestão foi marcada por operações com alta letalidade policial, sobretudo em bairros periféricos da Baixada Santista.
Sua escolha como relator do projeto antifacção foi celebrada por governadores como:
- Tarcísio de Freitas (SP)
- Cláudio Castro (RJ)
- Ronaldo Caiado (GO)
- Romeu Zema (MG)
- Ratinho Junior (PR)
Mas soou como alerta vermelho no governo federal, que teme que o projeto seja menos um mecanismo de combate ao crime organizado e mais um instrumento político para que governadores construam uma narrativa de “guerra ao crime” de alto rendimento eleitoral.
O que o relatório muda
Entre os pontos centrais do relatório, estão:
| Medida proposta | Efeito prático apontado por especialistas |
|---|---|
| PF só pode atuar nos estados se o governador autorizar | Reduz a capacidade nacional de investigações integradas sobre lavagem de dinheiro, tráfico transnacional e corrupção policial |
| Ampliação da Lei Antiterrorismo para incluir facções | Pode criminalizar protesto e movimentos sociais, sem atingir o núcleo econômico das facções |
| Penas mais longas e regime mais duro para líderes | Endurecimento punitivo sem estratégia de inteligência gera encarceramento em massa sem redução de poder |
| Corte de benefícios para dependentes de presos | Medida simbolicamente punitiva que não afeta o funcionamento estrutural das organizações |
| Tipificação de “organização criminosa qualificada” com pena de até 40 anos | Aumenta punições na letra da lei, mas sem garantir capacidade real de investigação |
Ou seja: um projeto forte na retórica, frágil na efetividade estratégica.
A visão da Polícia Federal
Delegados e setores da cúpula da PF alertam que o crime organizado brasileiro é transnacional, com forte base financeira, logística e tecnológica. Isso significa que o combate eficiente depende de:
- Rastreamento de fluxos bancários
- Cooperação internacional com polícias estrangeiras
- Monitoramento de portos, aeroportos e fronteiras
- Inteligência digital e acesso a dados criptografados
- Operações integradas entre estados
Tudo isso é competência da Polícia Federal.
Segundo avaliação técnica citada pelo Ministério da Justiça, o projeto relatado por Derrite “enfraquece decisivamente a capacidade do Estado brasileiro de combater facções em seu nível estratégico”, ao recolocar o combate ao crime em uma lógica estadual fragmentada, vulnerável a pressões políticas regionais e interferências locais.
Um delegado da PF ouvido em reserva foi direto:
“As facções adoram quando o Estado se divide. Quanto menos integração, mais elas crescem.”
A contradição política
A crítica central é a seguinte:
Governadores fazem política com a imagem da guerra ao crime, mas evitam tocar nos interesses e nas alianças econômicas que alimentam o tráfico em grande escala.
As operações que rendem manchetes — tiros, helicópteros, blindados — atingem o varejo:
o jovem de 17 anos com fuzil no morro.
Mas o crime não se sustenta no morro.
Ele se sustenta:
- nos portos,
- nos esquemas de importação de armas,
- nas empresas de fachada,
- nas campanhas eleitorais financiadas por dinheiro ilícito,
- e nas alianças políticas locais.
E é justamente a PF que historicamente atinge essa camada.
O risco para a soberania nacional
Ao reduzir o papel da PF, o projeto:
- Enfraquece cooperação internacional
- Quebra o fluxo federal de inteligência
- Facilita infiltração e cooptação local
- Aumenta a vulnerabilidade do Estado brasileiro
Não se trata apenas de segurança pública.
Trata-se de soberania.
Sem ataque aos líderes do crime
O projeto antifacção, tal como está, não enfrenta o crime organizado no topo da cadeia, mas reforça a política do espetáculo: muita bala, muita imagem, pouca inteligência, menos Estado e mais improviso.
Combater facções exige:
- Coordenação nacional
- Inteligência financeira
- Ação integrada
- Controle externo das polícias
- Combate à corrupção e milícias
Qualquer coisa diferente disso é palanque armado. E em última instância, o que fica claro é a atuação de governadores e políticos de direita em geral para proteger o dinheiro no bolso das lideranças do crime organizado. Com quais interesses? Aí cabe à Polícia Federal investigar.
