Cosme e Damião: doce sopro de memória

Hoje, 27 de setembro de 2025, o ar parece carregar uma saudade suave de balas e risinhos. Quando criança, esse dia era uma festa de sacos coloridos — pé de moleque, bala de coco, maria-mole, pipoca doce, pirulitos — pequenos tesouros embalados em saquinhos que pesavam no punho, leves no coração.

Saíamos pelas ruas, em bando, procurando onde estavam sendo distribuídos os saquinhos; quem tinha recebido cartões previamente já tinha garantido um estoque nas casas onde, dias antes, os cartões haviam sido distribuídos. Nesses cartões haviam o endereço e o horário da distribuição.

Nas ruas, várias filas mostravam onde a doçura nos aguardava.

Era um frenesi gostoso na hora do “doce avanço”, balas e guloseimas atiradas no meio da molecada. Tinha que ser esperto para pegar o máximo de balas no meio do empurra-empurra.

E a brincadeira tinha versinho para “zoar” os concorrentes: “ ali tá dando….cocô de rato vai levando”. Porque era importante passar a informação onde havia distribuição para os amigos e despistar os concorrentes, afinal chegar na frente garantia um bom luga na inevitável fila.

Era como recolher bênçãos. Era a doce religiosidade.

Lembro que minha madrinha, Dona Vavá, fazia caruru, um prato baiano como ela, a base de quiabo. Uma delícia que a gente aguardava com água na boca e devorava rapidamente.

Na Bahia, o dia 27 de setembro é celebrado com o tradicional Caruru de Cosme e Damião, prática que ultrapassa barreiras religiosas e é reconhecida como patrimônio imaterial do estado. Ela se expressa numa mesa farta que reúne crianças e adultos em torno de comidas típicas de terreiros de religiões de matriz africana — como caruru, vatapá, acarajé, abará, peixes, farofas, feijão fradinho, milho branco e frutas.

Assim é o Brasil, a distribuição de doces no dia de São Cosme e São Damião vem de um sincretismo religioso: os santos cristãos foram associados aos gêmeos Ibejis, orixás da inocência, da infância e da alegria. Nas religiões de matriz africana, os saquinhos de guloseima funcionam como oferendas aos Ibejis, ou aos Erês — uma forma de agradecer ou atrair proteção para as crianças. Em muitos lares católicos, os doces continuam como eco de uma gratidão antiga, um gesto que foi promessa e virou rotina.

Mas o que restou dessa festa em muitos lugares? Em cidades grandes, nos bairros onde o ritmo urbano devorou o espaço dos vizinhos, quase nada. E em muitas casas, a promessa que gerou os doces murchou com o tempo. Em contrapartida, em pequenas cidades e nos terreiros de religiões afro-brasileiras, os doces ainda se oferecem — como oferenda, como canto, como memória viva.

Hoje, lembrei do meu bairro. Por diversas vezes, nesse mesmo dia, já adulto, andei pelas ruas para ver se encontrava um vestígio desse rito doce. Encontrei ruas desertas, sem crianças. Caminhei por lugares onde vivi tantas alegrias. Passei em frente a casas onde os filhos talvez já não esperem presentes açucarados, mas mensagens de aplicativo ou notificações.

Hoje, parei um pouco e imaginei que em algum lugar de Brás de Pina, no Rio de Janeiro (bairro onde cresci) alguém ainda persista em “dar doces nessa data”, talvez em memória à própria infância açucarada. E desejei do fundo do meu coração que cada bala ainda entregue seja um pacto entre quem dá e quem recebe — promessa de resistência, fé que não se rende.

Felizmente, nos terreiros, vejo que o dia se mantém firme: alimentos, cânticos, oferendas, abraços.

No terreiro que minha esposa, Fátima, frequenta, ontem teve celebração com muito doce e alegria. Distribuíram saquinhos de guloseimas e a criançada festejou. Lá, como em outros centros de culto afrobrasileiro, a presença dos Ibejis é celebrada com encanto e os doces são partilhados. Ali, a tradição não envelheceu — ela respira.

Mas fora desses espaços, a tradição enfraqueceu. O modernismo; as rotinas urbanas; o medo de assaltos nas ruas e de gente estranha dando doces para os nossos filhos; o receio de envenenamento; a intolerância religiosa; o dia-a-dia em um mundo cada dia mais cruel; , conspiram contra a tradição. A festa virou lembrança afetiva mais do que ritual vivificado. A distribuição de doces, que foi um ato coletivo, quase se tornou ato solitário, lembrado apenas pela saudade.

E, no entanto, é preciso insistir: propor aos outros aquilo que a fé nos ensinou — uma bala, um sorriso, um gesto de cuidado. Porque, nesse 27 de setembro, enquanto as crianças de hoje esperam talvez um presente caro, quem ainda sabe de São Cosme e São Damião sabe que o melhor presente é a alegria compartilhada — doce, simples, humana.

Que, em cada canto onde haja uma criança, haja açúcar na mão, luz no olhar, e tradição guardada para ser reavivada. Que mesmo nos becos do esquecimento, um saquinho de doces possa renascer — memória viva e promessa renovada.