Governadores de direita tentam rotular criminosos brasileiros como narcotraficantes para esconder o próprio fracasso na Segurança Pública

Classificação buscada por políticos como Cláudio Castro encontra resistência de especialistas; milícias têm raízes e estrutura bem distintas do narcotráfico internacional

Políticos de direita, especialmente governadores, com destaque para Cláudio Castro (PL-RJ), têm pressionado autoridades norte-americanas para que organizações criminosas no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, sejam formalmente classificadas como “narcotraficantes” ou “narcomilicianos”. O objetivo dessa iniciativa é obter respaldo político e institucional para políticas de segurança com viés militarizado, aumentar o acesso a tecnologias e verbas estrangeiras e fortalecer a legitimidade de operações repressivas.

No entanto, especialistas em segurança pública, juristas e entidades de direitos humanos alertam para os riscos e inconsistências desse enquadramento, afirmando que os grupos em questão não se enquadram tecnicamente nas definições internacionais de narcotráfico.

O que é um narcotraficante?

No contexto internacional, o termo narcotraficante se refere a indivíduos ou organizações que integram redes transnacionais de tráfico de drogas. Esses grupos operam em várias etapas da cadeia — produção, refino, transporte e distribuição de entorpecentes — e costumam ter estrutura empresarial, rotas internacionais, conexões com governos estrangeiros e grande poder de financiamento armado.

Exemplos clássicos incluem:

  • Cartel de Medellín e Cartel de Cali (Colômbia), nos anos 1980 e 1990.
  • Cartel de Sinaloa (México), liderado por Joaquín “El Chapo” Guzmán.
  • Cartel de Los Zetas, também no México, com atuação paramilitar.

Esses grupos foram responsáveis por conflitos armados internos, processos de corrupção institucional e violações massivas de direitos humanos.

Por que os grupos brasileiros não são narcotraficantes?

No Brasil, organizações como o Comando Vermelho (CV), o Terceiro Comando Puro (TCP) e a milícia têm forte presença territorial, mas não operam rotas internacionais de drogas. Sua atuação é predominantemente local, centrada em mercados ilícitos urbanos: venda de drogas, extorsão, controle de serviços como transporte alternativo, gás, internet e venda forçada de imóveis.

Além disso, a estrutura desses grupos é fragmentada, com pouca hierarquia e alto grau de adaptação a contextos políticos locais. O controle do território e o domínio sobre comunidades são obtidos muitas vezes com apoio de setores do Estado — o que afasta ainda mais qualquer analogia com os cartéis transnacionais.

O uso político da classificação

A tentativa de transformar milicianos e traficantes brasileiros em narcotraficantes atende a uma lógica político-ideológica. Governos estaduais buscam justificar o endurecimento das políticas de segurança e atrair cooperação internacional — inclusive apoio técnico, armamentos e financiamento dos EUA.

Essa narrativa também serve para isentar o Estado de suas responsabilidades históricas na formação e manutenção desses grupos. Ao rotular os criminosos como entidades externas, se ignora a participação ativa de agentes públicos — como policiais e políticos — na origem e sustentação das milícias, especialmente no Rio de Janeiro.

Milícias no Rio de Janeiro: origem e envolvimento do Estado

As milícias surgiram no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 como grupos compostos, em sua maioria, por policiais militares e civis, bombeiros e agentes penitenciários. Inicialmente apresentadas como “autodefesas comunitárias” contra o tráfico, rapidamente passaram a exercer controle armado sobre territórios inteiros, cobrando taxas e extorquindo moradores.

Esses grupos se consolidaram em áreas como Rio das Pedras, Muzema e Jacarepaguá, expandindo-se posteriormente para outras zonas da cidade e da Baixada Fluminense. Investigações da Polícia Civil, do Ministério Público e da CPI das Milícias (2008) identificaram a participação de diversos políticos, incluindo vereadores, deputados estaduais e federais, em articulações com milicianos.

A estrutura desses grupos conta com a conivência ou participação direta de agentes de segurança pública. Essa relação permite que eles atuem com baixa resistência institucional, explorando a informalidade urbana e o medo como ferramentas de controle social.

Narrativas que absolvem o Estado

Conforme análise do jornalista João de Barro no Intercept Brasil, o uso da expressão “narcomilícia” serve para esvaziar o debate sobre o papel do Estado na gênese das milícias. Ao criar um termo híbrido, governadores como Cláudio Castro tentam dar roupagem de combate ao crime organizado, enquanto evitam enfrentar o problema estrutural da infiltração de forças estatais nas organizações criminosas.

A retórica do “inimigo comum” permite o endurecimento das ações de segurança, mas não contribui para a construção de soluções efetivas e democráticas. Pelo contrário: reforça o ciclo de violência policial, violações de direitos e impunidade.

Crime de políticos

A reclassificação dos grupos criminosos brasileiros como narcotraficantes atende mais a objetivos políticos do que a critérios técnicos. Ignora as especificidades das milícias, esvazia o debate sobre a responsabilidade do Estado e abre margem para a intensificação de políticas repressivas com apoio internacional. O combate ao crime organizado no Brasil exige diagnóstico preciso, transparência institucional e políticas públicas que enfrentem as causas estruturais da violência.