Uma tradição em risco: Sexta-feira Santa é dia de “fechar o corpo” com milome no Espírito Santo

imagem: Freepik AI

No Espírito Santo, a Sexta-feira da Paixão tem gosto forte, cheiro de mato e um ritual que atravessa gerações: tomar uma dose de milome com cachaça para “fechar o corpo”. A tradição é séria — mas nem por isso deixa de ter seu lado festivo. Nas comunidades, principalmente na Grande Vitória, essa prática cultural envolve vizinhos, panelas de torta capixaba, rodas de conversa e, claro, o famoso garrafão de infusão de milome.

Um gole de proteção (e coragem)

O milome é um cipó de folhas largas, facilmente identificado nas feiras livres da região. Seu nome curioso vem do formato das folhas, que lembrariam o órgão masculino — daí o apelido folclórico “mil homens”. Misturado com cachaça e deixado para curtir longe do sol por até um ano, o milome vira uma bebida potente, muito amarga e terrosa, daquelas que “raspam a garganta” e “descem limpando a alma”.

Mas o efeito que o pessoal quer mesmo não é só o paladar: acredita-se que o milome, ao ser consumido na Sexta-feira Santa, fecha o corpo contra doenças, inveja, mau-olhado e outras pragas invisíveis. É o escudo invisível da fé popular, preparado artesanalmente e compartilhado em clima de festa.

Receita com fé e tempo

A tradição manda que o preparo comece com a compra do cipó — encontrado facilmente nas feiras da Vila Rubim, em Vitória — e cachaça de qualidade. O milome é picado, colocado em garrafões e deixado para descansar por meses, de preferência num local coberto ou até enterrado no quintal, como faziam os antigos. O resultado é uma bebida de cor intensa, sabor amargo e uma aura de respeito.

Embora o uso mais simbólico seja mesmo na Semana Santa, o milome também aparece em outras infusões medicinais. Nas feiras, não faltam relatos populares de que ele ajuda a aliviar dores no corpo, reumatismos, diabetes e até picadas de cobra. Tudo isso sem comprovação científica, claro — mas com a confiança de quem aprendeu a tradição desde pequeno.

Festa de fé e comunidade

Nos tempos antigos, a festa era comunitária: cada um levava um prato e garantia sua dose. Católicos, evangélicos, espíritas, crentes e descrentes — todos se encontravam em volta do garrafão. Não havia proibição nem exigência, só o desejo de seguir a tradição. No fim, entre risadas e pratos cheios de torta, o corpo estava fechado e o coração, aberto. Outra tradição é ir no bar e tomar uma dose. Na sexta-feira santa não se paga pelo milome que se estorna garganta abaixo.

Infelizmente, essa é mais uma das tradições que estão se perdendo. Hoje em dia, os botecos estão sumindo e entre os poucos remanescentes anda difícil encontrar a bebida. Quem não quer ficar sem fechar o corpo pode dar um pulo na Vila Rubin, Bairro República, Goiabeiras, São Cristóvão e rodar botecos tradicionais.