Desigualdade urbana no Brasil: pretos e pardos têm menos acesso à infraestrutura básica

Novo levantamento do Censo 2022 revela disparidades profundas no acesso a calçadas, transporte público e iluminação entre grupos raciais.

As ruas pavimentadas, as calçadas bem cuidadas e os pontos de ônibus próximos ainda não são realidade para todos os brasileiros. O Censo 2022, divulgado pelo IBGE, escancara uma desigualdade urbana enraizada: pessoas pretas e pardas vivem, em média, em locais com menos infraestrutura urbana do que pessoas brancas.

Os dados integram o suplemento “Características Urbanísticas do Entorno dos Domicílios”, e mostram que, mesmo com avanços pontuais nos últimos anos, o abismo racial nas cidades brasileiras persiste — e, em alguns casos, se aprofunda.

A desigualdade tem endereço

A pesquisa analisou elementos como pavimentação, arborização, iluminação, calçadas, pontos de ônibus, sinalização para bicicletas, rampas de acessibilidade e presença de bueiros. Em quase todos os indicadores, a população branca apresenta maior cobertura e acesso. Enquanto 91,3% dos brancos vivem em ruas pavimentadas, essa proporção cai para 87% entre pretos e 86% entre pardos. A mesma lógica se repete para a presença de calçadas: 88,2% dos brancos têm esse recurso ao redor de casa, contra 79,2% dos pretos e 81% dos pardos.

A realidade nas ruas brasileiras mostra que caminhar, pedalar ou esperar o transporte público pode ser uma experiência bem diferente, dependendo da cor da pele. Entre os brancos, 10,6% vivem em ruas com ponto de ônibus ou van — número que cai para 8,2% entre pretos e apenas 7,1% entre pardos.

Buracos e obstáculos: a paisagem desigual das cidades

Mesmo quando há infraestrutura, sua qualidade nem sempre é a mesma. A proporção de ruas com calçadas esburacadas ou desniveladas é maior entre os lares de pretos (65,2%) e pardos (67%) do que entre os de brancos (63,7%). Um detalhe aparentemente pequeno, como o estado da calçada, pode representar um risco diário para idosos, crianças e pessoas com deficiência.

As rampas de acessibilidade, por exemplo, são encontradas em 19,2% das ruas onde moram brancos. Entre pretos e pardos, a taxa é de 11,1% e 11,9%, respectivamente — menos da metade. O mesmo padrão se repete na arborização, na presença de bueiros e, até mesmo, nas ciclovias: enquanto 2,5% dos brancos vivem em áreas com sinalização para bicicletas, apenas 1,4% dos pretos e pardos têm acesso a esse tipo de estrutura.

A geografia da exclusão

Para o IBGE, essas diferenças não são meras coincidências urbanas. Segundo Jaison Cervi, gerente de pesquisas do instituto, os indicadores estão ligados a condições socioeconômicas e ao fato de pretos e pardos representarem a maioria dos moradores de comunidades e favelas. Em levantamento anterior, o IBGE já havia revelado que 72,9% dos residentes em áreas precárias são pretos ou pardos.

“A ausência de infraestrutura adequada nesses territórios é, ao mesmo tempo, consequência e motor da desigualdade. Ela afeta o acesso ao transporte, à educação, à saúde e à própria dignidade”, resume Cervi.

Indígenas e o debate sobre infraestrutura

A situação dos indígenas também chama atenção. Em quase todos os itens avaliados, essa população aparece com os menores índices. Apenas 75,3% vivem em ruas com calçadas pavimentadas — muito abaixo da média nacional de 88,6%. Contudo, os próprios analistas do IBGE ponderam que o conceito de infraestrutura urbana pode não se aplicar da mesma forma a terras indígenas ou territórios tradicionais.

“É preciso compreender o contexto socio-organizacional dessas populações. Calçadas e pontos de ônibus talvez não façam sentido dentro de suas dinâmicas”, explica o analista Maikon Roberth de Novaes.

Por que isso importa

A infraestrutura urbana é mais do que uma questão estética: ela determina quem pode circular com segurança, quem acessa serviços com facilidade e quem tem qualidade de vida. Em um país ainda marcado por profundas desigualdades raciais, o espaço urbano reflete — e reforça — essas diferenças.

O estudo do IBGE não aponta culpados, mas oferece um retrato detalhado de uma realidade que não pode mais ser ignorada. Cabe agora à sociedade e aos gestores públicos transformar esses dados em políticas concretas, capazes de levar dignidade a todos os endereços.

Destaques
1.O levantamento das características urbanísticas do entorno dos domicílios observou dez quesitos relacionados à infraestrutura urbana brasileira.
2.Em 2022, das 174,2 milhões de pessoas residentes em áreas com características urbanas no Brasil, 119,9 milhões (68,8%) moravam em vias sem rampa para cadeirantes. Em 2010, eram 146,3 milhões (95,2%).
3.Já 32,8 milhões (18,8%) viviam em vias com calçadas livres de obstáculos, quesito novo do Censo Demográfico 2022.
4.Segundo o Censo 2022, 146,4 milhões dos moradores (84,0%) viviam em vias com calçada, frente a 102,7 milhões (66,4%) em 2010. Pontos de ônibus ou van foram identificados em vias onde moravam 15,3 milhões de pessoas (8,8%) e pista sinalizada para bicicletas, onde residem 3,3 milhões de pessoas (1,9%).
5.Em 2022, pela primeira vez, a estrutura viária para veículos foi retratada através do quesito de capacidade máxima de circulação da via: para 158,1 milhões de pessoas (90,8%), essa capacidade era de caminhões ou ônibus; 10,5 milhões (6,1%), carro ou van; 5,0 milhões (2,9%), motocicletas, bicicletas e pedestres.
6.O percentual de moradores em vias com iluminação pública no total do país atingiu 97,5% (169,7 milhões de moradores). Em 2010, esse percentual havia sido de 95,2% (146,2 milhões).
7.Cerca de 154,1 milhões de moradores (88,5%) vivem em vias pavimentadas.
8.A infraestrutura de drenagem representada pela presença do bueiro ou boca de lobo nas vias está presente para 53,7% dos moradores (93,6 milhões de habitantes). Em 2010, esse percentual era de 39,3% (60,3 milhões).
9.Em relação à arborização, 58,7 milhões de pessoas (33,7%) moram em vias sem arborização, enquanto 114,9 milhões (66,0%) vivem em vias com presença de árvores, sendo que 55,8 milhões (32,1%) estão em vias com 5 árvores ou mais.